sexta-feira, 27 de junho de 2014

UM REQUIEM PARA A LÍNGUA PORTUGUESA


Diz-se que a língua portuguesa faz hoje oitocentos anos, mas não é correcto. Simbolicamente comemoramos hoje a nossa língua por ter sido nesta data, há oitocentos anos, que se redigiu um documento oficial. Era no entanto falada e escrita há muito mais tempo. Anterior ao testamento de Afonso II foi descoberto outro documento de 1175: uma nota de fiadores com as dívidas do pobre Pelagio Romeu, atingido pela crise, triste sina de quem na Europa fala português.

Portugal tem tratado mal a sua língua, desde logo com o malfadado acordo ortográfico, não divulgando no ensino, como mereciam, os nossos poetas e escritores, e permitindo a introdução de neologismos absurdos que nada acrescentam à compreensão e à comunicação, muito pelo contrário, como recentemente aconteceu na televisão pública. Ouviu-se e leu-se a palavra clutch para designar uma pequena carteira de senhora. Só a apresentadora e uma concorrente de entre seis conheciam a inglesa palavra que em português significa embraiagem, um galicismo, e que a televisão pública decidiu ser uma pequena carteira de senhora, talvez por decisão de alguma marca comercial de acessórios, violando as regras mais elementares de um concurso falado em português. Assim se corrompe uma língua com mais de oitocentos anos.

Não nos admiremos pois que a comunidade dos países de língua oficial portuguesa também se tenha rendido aos negócios vendendo a língua a uma ditadura que viola sistematicamente os direitos humanos. Fecha-se o negócio no próximo mês, para não apagar o lustre das festas.

Para as comemorações, recomendo então que se mande cantar nos Jerónimos uma missa de Requiem!

quinta-feira, 26 de junho de 2014

APONTAMENTOS DO MUNDIAL V - BARBA, CABELO E...

 
Com todos os deuses a jogarem do nosso lado, com um golo literalmente caído do céu e que os pés de Ronaldo aproveitaram, mesmo assim não foi suficiente.
A barba e o cabelo ficaram por conta da nossa selecção. O bigode ficou por conta das outras selecções. Termina assim a minha incursão no mundo do futebol. Desde que um colega me explicou o que era um ponta de lança, pensei que me tornara perito.
A propósito, parece que no Brasil barba, cabelo e bigode tem conotações de natureza imprópria para um blog familiar, mas desde que vi um jogador do Uruguai morder outro futebolista já nada me espanta. Deixo-o à vossa imaginação.



segunda-feira, 23 de junho de 2014

APONTAMENTOS DO MUNDIAL IV - MATEMATICAMENTE FALANDO

 
 

Ghana significa rei guerreiro e todos já vimos como os seus jogadores fazem jus ao nome da pátria.
É mais fácil eu acabar a perceber de futebol por escrever estes apontamentos do que a selecção nacional apurar-se para os oitavos de final.

           

Fatawu Dauda: Photo by Martin Rose/Getty Images

 



quarta-feira, 18 de junho de 2014

AQUI D'EL REI

 
 

Sempre aprendi que só se devem fazer as perguntas para as quais se sabem as respostas e estas nos convêm, por isso não compreendo que se tenha desperdiçado a oportunidade para um referendo à monarquia em Espanha. Perdendo-se a oportunidade pode muito bem acontecer que sejam obrigados a perguntar quando já não souberem a resposta ou esta não convir ao príncipe. Mandava o bom senso, simpatizante monárquico o confesso, que se referendasse a monarquia derrotada em 1931, uma vez que em 1977 não houve alternativa capaz. Paradoxalmente talvez seja, afinal, o bom senso que impede esse referendo. É que o mesmo correria o risco de se tornar num encapotado referendo à independência da Catalunha. Embora nada indique que a monarquia perdesse na totalidade da Espanha, podia perder naquela Comunidade Autónoma. A Espanha vive assim um dilema e Filipe VI ou será hábil ou não será rei por muito tempo. Se a actual dinastia dos Bourbons se iniciou com o reinado de Filipe V que marcou o declínio da Espanha na Europa e no mundo, pode muito bem ser que termine com este Filipe VI marcando o declínio da Espanha… na Espanha.

            Muitos dos que exigem o referendo são os mesmos que afirmam faltar democracia às monarquias constitucionais. Criam assim o paradoxo de querer referendar um sistema não democrático, o que não abona a seu favor. Jacobinos serôdios e românticos, prisioneiros da febre que varreu o século XIX, gritam que a Monarquia não é democrática por o rei não ser eleito. Não querendo entrar no conceito de república versus democracia que é cheio de ambiguidades, sempre direi que não vejo onde possa haver qualquer decréscimo de democraticidade numa monarquia constitucional onde o rei é só o representante do Estado e da Nação, conforme uma constituição devidamente referendada. Convém lembrar que nas nossas democracias um dos órgãos de soberania, os Tribunais, não é eleito.

            Em democracia interessa que o poder executivo e legislativo seja eleito e que represente a maioria dos eleitores, ao mesmo tempo que garanta a representatividade das minorias. Eleger um presidente com 50% dos votos mais um, carece, a meu ver, de legitimidade por não estarem representadas as minorias, transformando a democracia numa imposição maioritária.

Deixar a representação da Nação, que não o governo, aos caprichos da natureza sobre uma família que simbolicamente liga o passado com o futuro da Nação, livre de ideologias partidárias, parece-me muito mais racional por paradoxal que seja, enquanto considerarmos a família como a célula principal da sociedade, como se toda a nação fizesse parte dessa mesma família. Parece-me também muito mais representativa: não sendo eleita por ninguém, também não é imposta por alguém. Não há imposição de uma maioria sobre uma minoria. A cama e o travesseiro sempre foram bons conselheiros, diz o Povo! Não se é rei por mérito, dirão, e é verdade. Nasce-se para rei como se nasce português ou espanhol. Não há nem mérito nem escolha. Depois aprendemos a ser parte da nação que não escolhemos como o príncipe aprende o cargo que não escolheu. Vemos nascer, educar e morrer o rei, como algo que é de todos nós. Como o filho a quem não escolhemos a cor dos olhos ou do cabelo. Aprendemos a ser Nação pelos afectos. Não pelo voto nem pela razão.

Uma Espanha dividida pelas suas diferenças precisa de um rei que simbolize as suas semelhanças. As da história, da cultura e das tradições. Cervantes pertence aos espanhóis como Picasso e Dali. Não de castelhanos, andaluzes ou catalães. Um andaluz, Lorca, escreveu belíssimas canções na língua galega, tal como Gil Vicente e Camões escreveram em castelhano e Afonso X em português.

Como Fernando Pessoa, considero o sistema monárquico como o mais próprio para os povos ibéricos mas, tal como Fernando Pessoa, considero-o completamente inviável em Portugal. Por carência de monárquicos e excesso de toureiros, fadistas, e tios e tias com tiques aristocráticos. É que marquesas nem as dos hospitais.

Viva el Rey!



segunda-feira, 16 de junho de 2014

APONTAMENTOS DO MUNDIAL III - Nihil sub sole novi



Nós jogámos melhor, nós jogámos melhor, nós jogámos melhor. Fomos estúpidos mas jogámos melhor. Fomos roubados e perdemos.
... Mas jogámos melhor!

sábado, 14 de junho de 2014

APONTAMENTOS DO MUNDIAL II - O HOLANDÊS VOADOR

 
 
A Espanha foi arrasada. Dizem que a maldição do Holandês voador se cura com o amor de uma mulher.
De facto, o melhor do mundial até agora é: as mulheres dos jogadores.
 
 
(se quiser ver, carregue em mulheres)

sexta-feira, 13 de junho de 2014

APONTAMENTOS DO MUNDIAL I

 
 
            Começou o mundial e o Brasil ganhou à Croácia. Para quem como eu não percebe nada de futebol, os croatas, inventores da gravata, eram aqueles rapazes vestidos de encarnado e branco aos quadrados que obrigaram os brasileiros vestidos de amarelo inveja a levantarem os pés de cima do relvado para justificarem o favoritismo com que chegam a este mundial.
Dizem que a cerimónia de abertura foi um espanto, não dei por nada, e foi servido ao Brasil em prato de louça satsuma, uma vitória sem asas (privilégios de anfitrião). É caso para o Sargentão dizer: Arigato, Mr. Nishimura.


segunda-feira, 9 de junho de 2014

Crónicas Gastronómicas III - AS SANDES DE ALEXANDRA

 

Agora que chega o Verão é necessário começar a pensar no que levar para o pic-nic, pelo que aqui darei conta de uma famosa receita de sandes que devem o seu nome ao conde de Sandwich que ao jogar às cartas mandou que lhe servissem a carne entre duas fatias de pão para que não tivesse de interromper o jogo. Virou moda e toda a gente passou a pedir “o mesmo que o Sandwich” e o bom do nosso pastor serrano nunca chegou a saber que aquilo que trazia no bornal e que a boa da Maria lhe preparava, tinha nome tão fino.

Na Inglaterra continuamos para então vos falar das famosas sandes da rainha Alexandra, mulher de Eduardo VII que tem parque ali ao marquês onde florescem os jacarandás. Trata-se de uma receita apropriada a senhoras de estirpe e agora que o parque se cobriu de roxo e azul, sempre podem merendar à sombra.

Era Alexandra mulher belíssima quando foi recebida em apoteose pelos ingleses que assim saudavam a noiva vinda da Dinamarca, contrariando Shakespeare que dizia nada de bom vir daquele reino. Menina prendada viveu em tempo de carestia apesar de serem os pais presuntivos reis da Dinamarca. Habituou-se assim ao rigor e à economia pelo que poupava no comer.

Casou-se com o então príncipe de Gales, filho da rainha Vitória, numa cerimónia que foi marcada pelo caos, não porque faltasse a comida mas pelos maus fígados da rainha. Insistiu que o casamento se fizesse durante a quaresma e na apertada capela do castelo de Windsor, birra de viúva que se recusava a sair de casa. Os outros que viessem até ela, que não se é Senhora do Mundo sem razão.

Encafuados na aldeia dos arredores de Londres, reis, príncipes e imperadores lutaram por um lugar onde se visse alguma coisa e houve mesmo um lord que julgando estar em Khyber pass, no Afeganistão, saltou por cima das filas de bancos para conseguir o livrinho da cerimónia para a sua lady. Durante a cerimónia, sem conseguir parar quieto, o futuro Kaiser alemão, neto garoto da rainha, não achou nada melhor para se entreter do que ferrar os dentes de leite nas pernas do tio que o kilt escocês desnudava, demonstrando desde cedo o gosto de morder nas canelas dos ingleses, prática que manteria em adulto. Terminada a cerimónia e já na boda, o duque de Cambridge, cumprindo a tradição, atirou o sapatinho da noiva que foi bater na cara do primo, o príncipe de Gales que era o noivo, fazendo com que o mordomo proferisse a célebre frase, “não vai mais vinho para aquela mesa!”

No fim do repasto a estação abarrotou com a fina flor da aristocracia europeia que então viajava de comboio. O arcebispo da Cantuária que presidiu à cerimónia, viu-se envolvido num autêntico combate corpo a corpo para conseguir entrar na carruagem principal. Chamou em seu socorro o guarda da estação que lhe recomendou que se agarrasse à carruagem seguinte se queria chegar a horas de ouvir tocar as Vésperas na catedral de São Paulo. A esposa do primeiro-ministro deu-se por satisfeita com um lugar na terceira classe mas teve que levar o marido ao colo enquanto a simples carruagem se iluminava com o brilho dos diamantes no valor de mais de 500 000 libras da marquesa de Westminster. Nada como os ingleses para organizarem uma festa!

Mulher de hábitos simples, Alexandra saía para os jardins e bosques em redor do palácio levando na cesta as suas célebres sandwichs que preparava do seguinte modo: batia muito bem um bom punhado de manteiga sem sal com uma pinga de sumo de limão e mostarda bem picante. É o melhor para uma relação, manteiga suave e escorregadia, apimentada com um pouco de mostarda. O príncipe, apesar do jejum da quaresma, sempre lhe fez cinco filhos, mas depressa fugiu para outras paragens indo alambazar-se com linguado au cognac no Maxim’s de Paris, porque não era homem de sandes. Ainda se fosse um prego ou uma bifana… Alexandra julgou que era azia e acreditou sempre que era ela quem ele amava pois só a trocara por actrizes e vendedoras de flores. Gostava do chinelo e gostos não se discutem, dizia a bondosa princesa a uma amiga íntima que acumulava a profissão de actriz com a de amante do príncipe.

Depois de bem misturada a manteiga com o limão e a mostarda, guardem-na no frigorífico, como a relação dos príncipes de gales. Desfiem a carne de um frango ou galinha que sobrou de outras refeições, ou cozam uma para o efeito, e com um garfo misturem com mayonnaise fazendo uma pasta que vai a temperar com um pouco de pimenta preta moída na altura e molho picante, de preferência, tabasco.

Barrem fatias de pão de forma escuro com a manteiga de mostarda e coloquem uma fina fatia de borrego assado ou língua estufada. Sobre esta fatia espalhem a pasta de galinha e mayonnaise e, por se tratar de sangue azul, convém terminar com uma coroa de folhas de rebentos de mostarda ou, em substituição, folhas frescas de agrião, que não sendo tão aristocrata é burguês que baste. Coloquem outra fatia de pão por cima e cortem a sandes em quadrados mais pequenos que a gente fina come como os passarinhos.

Coloque as sandes na cesta onde guardou a toalha aos quadrados e uma manta para estender, escolha um bom vinho para acompanhar e vá até à mata mais próxima. Convide o guarda-florestal que sempre é mais seguro que um príncipe, e se vir o lobo mau, convide-o também!



quarta-feira, 4 de junho de 2014

TIANANMEN

            Ver um governo de trabalhadores disposto à justa distribuição da riqueza implantar-se em países com a dimensão do império russo ou do império chinês, foi um sonho imenso. Pela primeira vez era possível. Mas o sonho depressa se tornou num pesadelo. Em todos os países em que o socialismo com vista ao comunismo se implantou, os governos, todos sem excepção, se tornaram tirânicos, déspotas, cruéis e assassinos. O trabalhador: um mero número de estatística. Uma esperança esfrangalhada pelos próprios dedos dos que prometeram o paraíso. Ficámos órfãos dessa esperança.
Um só estudante enfrentando carros de combate na luminosa praça da Paz Celestial! Que o seu rosto não tenha ainda substituído os ícones de Mao e de Che, escandalosamente exibidos em posters e t-shirts, é uma afronta que só aumenta o sentimento de orfandade.
Tiananmen foi há 25 anos.
“Lá, sobre as montanhas do Oriente a cegonha cantou mas Abril não floriu e a neve não derreteu…” da ópera Turandot de Puccini
 


domingo, 1 de junho de 2014

COMO TRATAR UMA CABRA

 

          Porque Junho é o mês dos casamentos, vou aqui ensinar o método antigo e eficaz de tratar uma cabra de forma a torná-la comestível. A história mete vinho tinto, freiras em convento e militares franceses em campanha. Uma combinação explosiva que fez com que na região à volta de Coimbra se passasse a servir, nos banquetes de casamento, cabra dura e velha cozinhada em vinho tinto. Chamam-lhe chanfana e tem berço no Convento de Semide de Miranda do Corvo, na encosta da serra da Lousã, diga o que disser a confraria que a registou em Vila Nova de Poiares.

Governavam a região, com justiça e mão forte, as abadessas do convento, pelo que o povo, religiosamente, no fim do Verão, ali ia entregar as carnes devidas por imposto. Sabe o povo, quando oprimido, descobrir as manhas para aligeirar a canga que lhe põem em cima e o convento, em vez de carneirinhos suaves, abarrotava de cabras velhas e duras de roer. Se o povo tem manhas, mais as têm as mulheres obrigadas à reclusão de um convento. Aprenderam a suavizar as cabras mergulhando-as em vinho tinto. Adoçavam-se ao trato e mantinham-se Inverno fora. Quantos de nós não sabemos por experiência própria o que um bom tinto é capaz de fazer quando se quer ferrar o dente e em vez de cabritinha meiga e doce, nos sai cabra sabida e rebelde!

Quando os soldados de Napoleão irromperam por aquelas serras, sem respeito por nada nem ninguém, pilhando galinhas, ovelhas e a virtude das moças, decidiu o povo, por vingança, empeçonhar os poços, porque o que o diabo tem de levar, antes se dê a Deus. Matava-se a bicheza, fornecedora de viandas, mas agonizavam os franceses. Ficaram só as cabras que sobem aos montes para beber o orvalhado das ervas negando as águas dos vales. Se as boas freiras de Semide conseguiram salvar a virtude face à investida do marechal Massena não sabemos - o que o vento traz, o vento leva - mas salvaram-se da fome. A delas e a do povo que lhes seguiu o exemplo cozendo a cabra com vinho já que a água matava.

Pegue-se então na cabra aos bocados, salvo seja, mete-se numa caçoila de barro preto e ofereçam-lhe um dia num SPA. Bem massajada em azeite, banha, alhos pisados com casca, pimenta, sal, colorau, salsa, louro e noz-moscada, coberta de vinho tinto bem encorpado, deixem-na banhar-se de um dia para o outro. No começo da noite anterior à boda, acenda-se o forno de cozer o pão, deixando-lhe dentro as brasas. Mete-se a caçoila bem coberta com folhas de couve, tapa-se a porta com cinza ou massa de farinha e fica a cozer até que os noivos regressem do altar onde se prometeram. Diga lá o leitor se haverá cabra que resista a um tratamento destes?

No fim da boda, antes dos noivos se recolherem, devem as mães da noiva e do noivo, cuidar que ficam bem aconchegados para que não haja negaças. Para isso vão entremeando fatias de pão com couves cozidas, sendo a última camada de couves. Rega-se tudo com o molho que sobrou e os restos de carne que houver e vai ao forno a tostar. Chama-se a isto a sopa do casamento e se o noivo lamber os beiços e molhar a sopa, ouvir-se-ão os primeiros vagidos lá para a Primavera.