sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

DO DESLUMBRAMENTO




A primeira vez que vi um El Greco chorei.

Foi no palácio de Sternberg em Praga. Numa das salas, ao fundo, um pequeno quadro enchia o espaço ofuscando os Bruegel e outros de quem esqueci o nome. Não era o Salvador de Toledo, que nos fixa nos olhos, mas um Cristo jovem que olha com amargura o Céu. Anos mais tarde haveria de me embriagar em Toledo com o grego, mas ali, ainda inocente, chorei.

Como disse, em Toledo foi um inebriamento com Greco: se a modernidade do Enterro do Conde de Orgaz me fez pairar sobre o chão do átrio da igreja de São Tomé, o que direi daquela bandeira que cobre o corpo do martirizado e que inunda a sacristia da catedral com gritos de vermelho?

A inocência no entanto esvai-se e com ela a capacidade de deslumbramento. Perdida a inocência, ainda me deslumbro aqui e ali, no Prado, em Orsay, na espiritualidade de Bach ou sofrendo com Isolda.

São assim os meus deslumbramentos. Com as obras dos homens, não com os autores, que são fracos. Alguns, na sua fraqueza, produzem obras primas como a que nos deslumbra na sacristia da catedral de Toledo: o pintor, que com excessivo pudor beato criticava os nus de Miguel Ângelo, cegou-nos com aquele clarão escarlate da túnica sem costura de Cristo.

Por isso ainda me surpreende o caso dos ludibriados por Baptista Silva: ver homens adultos a quem a inocência há muito deveria ser palavra esquecida, que em vez das obras se deslumbram com as medalhas, as condecorações, os diplomas (merecidos ou comprados) e os cargos de qualquer luminária que se ponha em bicos de pé, como se fossem garantia da obra que nunca viram, é coisa que ainda me consegue espantar.

Ver as nossas elites beberem sofregamente as palavras de um qualquer Dulcamara (udite, udite, o rustici…), sem repararem que não diz mais do que o motorista do táxi que os trouxe, deve ser a causa da amargura naquele rosto de Cristo em Praga.

Que o deslumbramento do fogo de artifício do réveillon não vos cegue ao essencial da vida. Um bom ano.



segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

NÃO PERCEBO NADA DE ECONOMIA, MAS...



Amanhã é Natal e lá estão o burrinho e a vaca no presépio. Animais de carga e de trabalho. Lá estarão também os pastores e depois virão os sábios, homens de ciência, como eram os magos. Talvez que nunca na história o trabalho tenha sido tão dignificado como no presépio. É o cristianismo, muito antes das ideologias do século XIX, que vai elevar o trabalho à dignidade que hoje tem, muito por mérito da regra da ordem de São Bento, que eleva o trabalho e a leitura às melhores das actividades humanas. Trabalho e cultura.

Agentes da cultura fogem agora da França, sobrecarregados, coitados, pela carga fiscal. Afirmam eles que ganharam o dinheiro com a sua imagem e com o seu trabalho e que por isso não é justo tal carga. Zola, um dos grandes homens da cultura francesa, não fugiu, não se queixou: antes foi viver no meio dos mineiros, partilhou o seu viver e o seu trabalho. Depois escreveu uma obra prima.

Os mineiros produzem trabalho sob condições terríveis. Enriquecem os países e os proprietários das minas. Todos enriquecem menos os mineiros. Os estados, procurando maior justiça social, taxam com impostos os que enriquecem com os mineiros, mas taxam também os mineiros que não enriqueceram. Depois, os estados, lembrando-se da cultura, apostam fortemente, como o caso da França, no cinema, no teatro, etc. A cultura, fortemente subsidiada para que todos a ela possam ter acesso, permite que homens como Depardieu sejam conhecidos não só em França mas no mundo inteiro. Pode assim Depardieu cuidar da sua imagem e ganhar dinheiro com ela. Os mineiros, não.

Maior foi Cyrano, que Depardieu tão bem encarnou como personagem, e no entanto foi pouco mais que miserável. Não se subsidiava a cultura e os mineiros não faziam ideia quem era Cyrano para que pudesse cuidar da imagem. Este limitava-se a escrever no meio das batalhas, porque era soldado.

Se não houver dinheiro para subsidiar a cultura, não haverá consumidores de cultura e Depardieu não terá imagem para cuidar, pois os mineiros não saberão quem é. Vai a França então taxar quem? Os mineiros?

Dizem que a taxa é excessiva. Talvez. Mas mesmo assim Depardieu continuará rico e os mineiros pobres, e os impostos sempre ajudam a cuidar da sua imagem, por isso é investimento. Não vão os mineiros lembrar-se que há mais de duzentos anos a taxa para os ricos chegou aos 100%, vida incluída… essa sim, era excessiva.

Dirão que raio, na Noite de Natal, vir para aqui falar destas coisas, mas o que querem. Desde que soube pela TV que sou dono de um banco falido, fiquei assim!

UM BOM NATAL PARA TODOS.



sábado, 15 de dezembro de 2012

GUARDA O TEU IRMÃO


imagem do sítio da Câmara Municipal de Lisboa


           Quando Deus pergunta a Caim: -Onde está o teu irmão Abel?- e aquele responde - Não sei. Sou porventura guarda do meu irmão?- constatou o primeiro conflito social e político. Somos ou não guardas dos nossos irmãos?

            Implícito na pergunta de Deus está contudo a base da única teoria social e política que nos pode levar a bom porto. Só tem um teorema e uma regra:

O teorema de que toda a humanidade é uma fraternidade (qualquer estudo científico hoje o demonstra).

A regra de que, sendo todos irmãos, nos comportemos como tais, e que cada um seja guarda do seu irmão.

Deslumbrem-se os políticos com o luxo e o brilho da árvore de natal, mas que nenhum, de esquerda ou de direita, se abeire do presépio sem ter como lema este teorema e esta regra.


sábado, 8 de dezembro de 2012

DA AMIZADE E DO ENCANTAMENTO



Hoje, 8 de Dezembro, dia da Imaculada Conceição, padroeira de Portugal, faz anos que Francisco Aires de Figueiredo morreu na Quintã, freguesia de Cernache do Bonjardim, em 1681. O padre Francisco é meu parente remoto e personagem do meu livro Suite Beirã.

Dizia Pascal que evocamos o passado que nos foge, como para o deter. E hoje estou assim: evocando o dia de ontem porque dele não queria sair. É que na biblioteca municipal do Cadaval, aconteceu a apresentação do meu livro Suite Beirã que foi um momento de grande felicidade e é por isso que gostaria de o deter.

Ouviram-se palavras sensíveis e cheias de luz ditas pelo presidente Aristides, e a Drª Anabela Várzea teve a gentileza e a generosidade de apresentar o meu livro de uma forma que me comoveu e que despertou um entusiasmo na plateia como eu nunca tinha visto em eventos do género. A Drª Eugénia realçou, em palavras cheias de graça e sensibilidade, a amizade e os afectos, depois do grupo de jograis da central ter recitado palavras que tocaram fundo no coração.

Tudo isto abrilhantado pelo grupo musical jogralesca, que tocou magnificamente uma suite francesa e a triunfal marcha de Lully.

A casa estava cheia de amigos, a maior felicidade: tenho sempre mais do que mereço.
            Obrigado a todos

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

TÚMULOS, INDEPENDÊNCIAS E SECESSÕES



A propósito das recentes eleições na Catalunha ouvi um cidadão daquela região dizer para as câmaras de televisão, que desejava para a sua terra a independência, tal como Portugal a tinha conseguido em 1640, ano em que a Catalunha viu a sua pretensão derrotada na sequência do caso da “guerra dos segadores”. Tal comparação é recorrente e utilizam-na como vitimização a puxar à boa consciência das almas sempre prontas ao sobressalto perante os povos oprimidos. No entanto a mesma é pouco rigorosa senão mesmo ofensiva, para nós portugueses. Os casos português e catalão não são idênticos e nunca o foram.

Desde logo a falta de rigor nas palavras: independência, para nós europeus pós-coloniais, faz lembrar a libertação do jugo colonial, como o das nações africanas e asiáticas. O mesmo termo foi contudo utilizado anteriormente para designar o que aconteceu às colónias americanas apesar de a situação não ser idêntica. Em África, os povos colonizados, não representados na potência colonizadora, assumiram os seus destinos libertando-se da potência estrangeira. Na América foram os colonos quem decidiram separar-se da pátria mãe. Os casos são manifestamente diferentes e não é uma palavra que os torna iguais.

Quanto aos sobressaltos, estes dependem mais dos motivos do que da vontade dos povos. Assim, quem verte lágrimas pela situação catalã não as verteria certamente em defesa da vontade da Carolina do Sul durante a guerra de secessão americana.

Porque afirmo então que aquela comparação me pareceu quase insultuosa? Porque Portugal teve de aceitar, por fatalidade, um rei que, embora português de direito (e de coração), trazia consigo a carga de outro trono e de outros interesses que colidiam com os nossos. Não foi Castela quem nos tirou soberania, foi a Espanha constituída pela união de Castela e Aragão, que é o mesmo que dizer, Castela e Catalunha. Se esta queria a secessão, que não independência, nós queríamos ver-nos livres de um rei que parecia e actuava como estrangeiro. Não restaurámos a independência porque nunca a perdemos de jure e nunca fomos Espanha como a Catalunha.

Na verdade, fizemos um golpe de estado onde restaurámos a independência do nosso rei. Isto é, exigimos um rei que fosse livre e independente de outros interesses que não os portugueses. “Somos livres porque nosso rei é livre…”

Que se saiba a Catalunha, desde a reconquista aos mouros, não foi colónia mas potência colonizadora dos territórios sob domínio mouro e do Mediterrâneo, cujo senhorio viu ameaçado com a conquista de Constantinopla pelos turcos que assim assumiram o predomínio naquele mar.

Perde o Mediterrâneo importância e por Sevilha se abre uma porta ao Atlântico e às riquezas do Novo Mundo que um alentejano, baptizado de italiano, oferece de bandeja. Castelhanos e Catalães juntam-se em casamento com comunhão de bens que chegam das colónias americanas e asiáticas.

E são Castela e Catalunha unidas de comum acordo, e com igual cota, que conquistam o reino de Granada, último suspiro andaluz, e usufruem juntas das suas riquezas e juntas formam, finalmente, a Espanha. Lá estão, no último rincão ibérico, na cripta da capela real da catedral da Encarnação em Granada, repousando em paz, Fernando e Isabel, com Joana, a Louca, Filipe, o Belo e Miguel da Paz, príncipe de Portugal e das Astúrias e sonhador da união ibérica.

Catalunha e Castela uniram-se porque quiseram, Portugal foi unido querendo ou não. Gritam agora os Catalães da secessão contra os que estão em Madrid, num provincianismo ferido porque a capital da Espanha de Fernando e Isabel já não está em Sevilha, mas no centro de Castela.

 Se a Catalunha se quer separar de Castela, e quebrar uma união formada no interesse de ambas, é assunto que não me diz respeito. Mas diz-me respeito comparações abusivas a puxar ao sentimentalismo, e diz-me respeito uma intelectualidade portuguesa que sempre que ouve falar em independências se agita empolgada e provinciana, cega ao chauvinismo e egoísmo que se pode esconder por detrás desse desejo, esquecendo que a luta dos povos se faz na internacionalização e não com nacionalismos serôdios. É que a Andaluzia, com a “preguiça” dos povos do Sul, parece agora exigir demasiado dos povos do Norte, como se cobrasse renda pelos túmulos.

Lembrar-se-á a Andaluzia da sua posição de colonizada, confirmada pelas estátuas jazentes de Castela e Catalunha no túmulo de pedra da catedral de Granada?

Tornar-se-á Isabel numa viúva de pedra, apagando-se a estátua de Fernando como se fazia nas fotografias da antiga União Soviética, na tentativa de esconder a História?

Não. A restauração que agora comemoramos não é comparável a secessões. Sairão os Catalães da Espanha que construíram, como entraram: querendo. Nós não saímos porque não chegámos a entrar.

Mas não esqueçamos que foram co-fundadores da Espanha, no momento mais alto da sua história, onde partilharam glória e riqueza. Ao saírem no momento em que essa Espanha deles precisa, não saem como vítimas…



quinta-feira, 22 de novembro de 2012

CORTES NO PRESÉPIO



A Sua Santidade o Papa,
            Cidade do Vaticano, Roma

 Vossa Santidade,

Soube que escreveu um lindo livro sobre a infância de Jesus e, por isso, quero dar-lhe os parabéns. Ficou-me no entanto uma profunda mágoa quando me disseram (não li o livro) que o Santíssimo Padre, talvez contagiado por esta onda de austeridade que a troika nos tem imposto, decidiu fazer cortes no presépio: que a estrela pode ficar desde que lhe chamem super nova, que a virgem é intocável, mas que o burro e a vaquinha vão ter de sair: não constam do registo histórico, diz Vossa Santidade.

Eu protesto. Para cortes já chega o do subsídio de Natal, e no presépio ninguém toca. Nem mesmo Vossa Santidade. É patrono e guardião dos presépios aquele bondoso rapazinho de Assis, que é Francisco como eu, e o Santíssimo Padre vai-me perdoar mas estão ainda os santos no Céu acima de Vossa Santidade na Terra. Pensa o Santíssimo Padre com os seus botões que lhe falo assim porque como não ditou da cadeira de São Pedro não pode invocar a infalibilidade de Vossa Santidade, pelo que não temo a excomunhão. E se assim pensa, pensa muito bem, que eu não sou temerário.

O meu protesto não é um mero slogan do tipo: FORA A TROIKA, QUEREMOS O PRESÉPIO DE VOLTA, não. Eu falo de factos, tal como Vossa Santidade. Arriscando-me a que me acusem de tentar ensinar o Padre Nosso ao Vigário, sempre lhe vou dizendo que tenho razões e provas que sim senhor, os bichinhos estavam lá. Se o Santíssimo Padre afirma que nem Mateus nem Lucas o atestam, também lhe digo eu que o não negaram.

Saiba o Santíssimo Padre que não sou de mexericos mas sabe o senhor e sei eu que Mateus era funcionário público e do Natal limitou-se a fazer o registo no cartório, com genealogia completa. Como gostava de se dar com os grandes deste mundo, não fosse ele cobrador de impostos, relatou com mais pormenor a visita dos magos do Oriente, sempre de olho, não fossem fugir ao IVA do ouro, incenso e mirra que estava pela hora da morte.

Lucas era bom rapaz, não o nego, mas era médico, com mania das higienes e entendeu por bem não misturar o gado com o menino por razões do politicamente correcto, não fosse a ASAE protestar. Mas vamos aos factos.

Diz Lucas que José e Maria subiram de Nazaré a Belém, a fim de se recensearem (império romano, burocracia fina e administração cuidada, um mimo). Atente Vossa Santidade no verbo: subiram! E assim, é.

Deixando Nazaré em direcção ao Sul, atravessaram o vale de Jezreel e começaram a subir as colinas da Samaria, com os seus terraços verdejantes de oliveiras, vinhas e figueiras. Não obstante o medo aos samaritanos, José ofereceu um figo a Maria que tinha desejos. Mais à frente embasbacaram-se com as colunas alinhadas ao longo da estrada que leva à magnífica cidade de Sebaste que Herodes mandou edificar em bajulação a César Augusto. Foi nessa altura que José, indignado, terá dito: é para isto que vão os nossos impostos; e Maria suspirou. E assim continuaram por sítios e locais da história dos judeus, admirando o local onde Jacob sonhou com uma escada que atingia o Céu e o campo onde se elevara a tenda da Arca da Aliança. Por fim entraram em Jerusalém, rezaram junto ao seu templo e continuaram até Belém. Sempre por montes e vales. Sempre em caravana que o mundo era perigoso e ainda o é mais por aqueles lados. Resumida assim muito resumidinha a viagem de José e Maria, quer Vossa Santidade fazer-nos crer que José ia obrigar Maria, grávida do menino, a percorrer aqueles 130 km, por montes e vales, a pé? Sujeito à crítica dos demais viajantes da caravana? - Olha-me pr’aquele. Gente fina (sim, porque José é ou não é descendente do rei David, como escreve Mateus?) e obriga a pobre rapariga, grávida, a viajar a pé - Não. Nem o Santíssimo Padre, apesar de alemão, consentiria numa coisa dessas, porque apesar de naquele tempo não terem de esperar horas intermináveis para passar as infames barreiras que agora vedam a estrada, sempre foram cinco dias a uma semana de caminhada. Maria houve por força subir de Nazaré a Belém montada num burro.

E já temos o burro.

Diz Lucas que Maria, em chegando a Belém, pariu e embrulhou o menino nuns paninhos e deitou-o numa manjedoura por não haver lugar na hospedaria. Ora Lucas não mente, mas, sendo médico, provavelmente rico e pouco habituado às usanças do povo, interpretou mal aquilo da manjedoura. Eu que nasci no meio do povo sei bem que isso da hospedaria não cola. Muito menos por aqueles lados onde, apesar de tudo, as leis da hospitalidade são sagradas. Sendo aquela a terra dos avós de José, por força a hospedaria pertencia a um dos tios ou primos do velho carpinteiro, e não se expulsa assim a família. O que na verdade aconteceu é que Maria, sentindo vir as dores pediu ajuda às primas e às tias. Estas, vendo que a casa cheia de gente não era o mais adequado para a função de maternidade, e temendo que o cheiro dos fritos provocasse enjoos à parturiente, trouxeram-na para fora e acolheram-se ao estábulo onde estava já o burrito descansando da estafa da jornada. Para mais, aquilo ficava no pátio junto à fonte que nele havia o que dava jeito para as lavagens, e fico-me por aqui não vá Vossa Santidade enjoar com os preparos puerpérios.

Ora acontece que na casa se hospedava uma egípcia, gente fina, mulher de um alto funcionário romano (isto de os romanos casarem com egípcias estava muito na moda desde o caso do Júlio César e do Marco António com a Cleópatra, mas isso já o Santíssimo Padre sabe), que tinha vindo do spa de Herodes junto ao Mar Morto para cuidar da beleza, e vendo toda aquela azáfama ofereceu-se para ajudar. Maria, ao princípio não gostou da ideia ao ver que a beleza da egípcia fazia brilhar os olhinhos de José, mas como tinha bom coração acabou por aceitar a ajuda. E foi a egípcia que se lembrou, para grande espanto das restantes parteiras: - é preciso providenciar o leite. Vai que se dá o caso de a mãe não o ter suficiente? Berra o menino com fome e acorda todos na hospedaria- Que sim, que era boa ideia, disseram todas à uma. Mas como fazer? As cabras e ovelhas do lugar tinham saído para o campo com os pastores, receosos que toda aquela multidão lhes azedasse o leite nos úberes. – Uma vaca – gritou a egípcia – por certo o senhorio, homem rico e influente, há-de ter uma vaca. Foi então que Isabel, prima de Maria, se lembrou da vaca do ti João, e foram todas, em grande rebuliço, ter com ele, perguntando pela vaca.

-       Mas vocês estão doidas? Onde é que queriam que tivesse a vaca, senão no estábulo?- E voltaram todas para o estábulo procurando pela vaca.

A vaca, tendo visto toda aquela confusão, deitara-se muito sossegada sobre um monte de palha e por isso ninguém tinha dado por ela. Quando se apercebeu que precisavam dos seus serviços, levantou-se imponente, com calmas de rainha, e tentou restabelecer a ordem no estábulo. Desde logo marrou com o burrito que se alambazava com um molhe de palha fresca obrigando-o a refugiar-se a um canto e a baixar as orelhas. Depois pôs-se a bufar a ver se aquecia o menino cuja cabeça já se via, como gritavam as tias enquanto a egípcia fugia agoniada.

E foi assim que nasceu o menino, entre uma vaca e um burro, e foi posto numa manjedoura.

Uma aranha desceu pelo fio agarrado à teia na esquina da trave que segurava o telhado, e pôs-se a girar à roda para entreter o menino. Um galo que debicava pelo pátio aproximou-se dos pés de José que, temendo que o cantar da ave lhe acordasse o recém-nascido, logo ali o degolou e fez uma canja para consolo de Maria. Isabel pediu-lhe a receita, uma estrelinha brilhou no alto e a vaca fez as pazes com o burro.

E é assim que Vossa Santidade não pode tirar o burro e a vaca do presépio. Preocupe-se o Santíssimo Padre com as coisas do alto: da estrela que é uma super nova e da inviolabilidade da Virgem; e deixe o povo tratar das coisas terrenas como a preparação de uma jornada, dos partos e da alimentação do menino.

Guarde-se Vossa Santidade do frio, que eu já me constipei.

Beijo-lhe as mãos na esperança da sua bênção.



quinta-feira, 15 de novembro de 2012

AS PEDRAS DA CALÇADA


Santiago Carrillo, o líder histórico do partido comunista espanhol, ombreando com o ex-franquista Suárez, a quem Carrillo chamava o “anticomunista inteligente”, e com o general Mellado, permanecem firmes e resolutos em defesa da democracia, durante o assalto de Tejero ao congresso dos deputados em Madrid. Estava-se em 1981 e o dia 23 de Fevereiro morria por detrás do pico Almanzor.
Quarenta e oito anos antes, noutra noite fria de Fevereiro, Berlim ilumina-se com o Reichstag em chamas. Hitler, interrompendo o jantar, confidencia a Goering que aquele é o sinal dos céus. Mais tarde dirá a um jornalista que aquele incêndio do parlamento alemão é o início de uma época de ouro na história da Alemanha.
Para além da destruição dos respectivos parlamentos, estes dois acontecimentos tinham em comum, como pano de fundo, crises financeiras tremendas e desemprego galopante. Os dois visavam a instituição de uma ditadura, objectivo histórico de qualquer assalto a parlamentos. Se no último a tragédia durou escassas horas, no primeiro teve a duração de um horror que não se conta em tempo.
Dizia Marx que a história se repete: primeiro em tragédia, depois em farsa. O que vimos ontem ao fim da tarde, para além da destruição das calçadas de Lisboa, foi a farsa em que quiseram transformar a justa indignação das pessoas.



domingo, 11 de novembro de 2012

O CANHÃO DA NAZARÉ E SUAS CONSEQUÊNCIAS

            Aqui há tempos, alguém pouco frequentador das salas de concerto nacionais, confessava-se admirado de ter ouvido uma orquestra portuguesa bem afinada. É assim ainda com muita gente. Não sabem, por exemplo, que Maria Callas entrou no palco do São Carlos de braço dado com Álvaro Malta, um obstetra que cantava ópera quase como amador, no melhor sentido da palavra, ou que no último ciclo do “Anel do Nibelungo” de Wagner foi um alcobacense, Jorge Trindade, quem nos deliciou com um comovente solo de clarinete naquele mesmo teatro.
E é assim porque se continua a pensar que só lá fora se faz bem, como se eu não tivesse ouvido uma orquestra alemã desafinar numa famosa sala de Londres, ou se não tivesse sido um alemão quem proporcionou uma das temporadas mais desastrosas do nosso teatro lírico.
Dir-me-ão que são as excepções que confirmam a regra. Talvez. De facto Portugal teve ao longo dos últimos anos e séculos, grandes nomes no meio musical, mas faltava-lhe consistência e regularidade. Isto é, eram excepções num meio onde faltavam orquestras, agrupamentos, escolas e cultura musical.
Era assim há 25 anos. Hoje é possível, no Oeste, e só com a prata da casa, percorrer o universo musical do jazz ao clássico com a qualidade “do que se faz lá fora”, e não estou a falar de excepções, mas de uma massa crítica de gente jovem que tem a técnica, o saber e a cultura musical necessárias, para transformarem a música numa actividade cultural de prestígio que a todos nos honra.
Essa massa crítica não nasceu de geração espontânea. Foi o esforço de alguns “doidos” que apostaram na educação e na formação. Da união de esforços de um “doido” do Oeste e de uma visionária que veio de França, se percorreu a distância que vai de uma loja de música a um conservatório de música. Depois foram outros projectos e tudo deu flor e fruto; agora são maestros, compositores, bandas de grande qualidade nas Caldas da Rainha, Valado, Famalicão e Nazaré, grupos de música ligeira, de jazz e de Câmara, festivais de música, etc. Para não me acusarem de ser excessivamente positivo, direi que só falta a ópera (resolvam os responsáveis pela educação o problema do ensino de cordas que o canto, cenários, guarda-roupa, faz-se cá que temos massa crítica e escolas para isso). O resto está cá tudo, com tanta qualidade como do melhor se faz por esse mundo fora.
Foi no São Martinho, época de apreciar as colheitas: Ontem, a Big-Band da Nazaré, com a rapaziada do Oeste, deu-nos momentos de felicidade e gozo, como quem frui de um néctar proveniente da vindima de uma vinha de boa qualidade, bem plantada, e cuidada.
Já que falamos da Nazaré, convém esclarecer que o jazz não é propriamente a minha praia, mas ontem, no Centro Cultural e Congressos de Caldas da Rainha, a Big-Band da Nazaré e seus convidados conseguiram comover-me e pôr-me com a lágrima ao canto do olho ao ouvir tão bela e preciosa colheita destes vinte e tal anos. Valeu a pena.
As cantoras e os solistas foram magníficos, mas seria arrogância pôr-me agora a fazer crítica musical. Não posso, contudo, deixar de sublinhar o excelente tema de João Capinha: A qualidade da composição, aliada à qualidade da execução, proporcionou-nos um momento de grande beleza.
E ouviram-se duas vozes magníficas: Joana Rios e Júlia Valentim. A “nossa” Júlia conheci-a quanto integrámos um coro para o Requiem de Mozart. A Júlia, que canta Schubert com a graça de um anjo, cantou jazz com a sensualidade e o calor dos planaltos de Angola. Esteve grande, enorme, naquele palco.
É caso para dizer que o canhão da Nazaré provocou uma onda gigantesca que varreu o Oeste. Obrigado Adelino Mota.
 


quarta-feira, 7 de novembro de 2012

A INFLUÊNCIA DE PANGLOSS NO ESTADO DA NAÇÃO


Durante muitos anos vivi, sem o saber, sob a influência dos ensinamentos do doutor Pangloss e, qual Cândido, julgando viver no melhor dos países possíveis. Esta é, talvez, a contribuição mais marcante que a educação do Estado Novo me deixou inculcada na alma. Tão forte era a sua marca que, ainda menino, julguei que o próprio Deus procurara para incarnar uma virgem de Entre-o-Douro e Minho (compreendam… foi há muitos anos…). Com o passar do tempo, e ao contrário do bom Pangloss sempre optimista, mas cuja vida fez jus ao adágio: nada é tão mau que não possa piorar; fui-me tornando cínico.
Como Leibniz, mentor estimado do professor da corte do barão Thunder-ten-Tronckh, fiz-me engenheiro. Ou, como manda a modéstia, obtive um diploma em engenharia. Nessa qualidade tive a oportunidade de ir apreciando como as doutas e sábias cabeças que administram o país vão gerando e parindo regulamentos e normativos vários. Por estes pequenos exemplos se vai percebendo o que por aí se foi fazendo.
Um dia, numa conferência ou seminário sobre ambiente, um certo secretário de estado, muito dado à polémica e por isso mandado rapidamente para Bruxelas, sentado à mesa de honra e baloiçando no ar as pernitas, gritava sério e rubicundo que Portugal estava atrasado porque gastava pouca energia e que era preciso urgentemente aumentar os nossos gastos energéticos. Eu, que ainda via ministros e secretários de estado aureolados como santos em altar, afundei-me como pude pela cadeira abaixo envergonhado de ainda correr a apagar as luzes do corredor. Não faltou muito tempo (talvez assustados com as marcas dos cascos) que não gritassem que era preciso diminuir a nossa pegada ecológica, desdizendo o que antes berraram.
De outra vez, surgindo a necessidade de em determinada aldeia do sopé da serra se construir um jardim-de-infância, vieram os técnicos com seus regulamentos ministeriais verificar o local. Apertados com a falta de espaços disponíveis, arranjara a autarquia um lugar mesmo azado para o efeito e juntinho à escola primária. Ficavam ali como Deus e os anjos. Gritaram que não, arrepanharam os cabelos e pouco faltou para rasgarem as vestes: onde já se viu, juntar criancinhas saídas do colo da mãe com matulões da primária. Titubeei que andavam todos juntos na única rua da aldeia e que juntos brincavam no adro da igreja. Fuzilaram-me com o olhar. Tempos depois era permitido que se juntasse a pré com a primária e as duas com o secundário: as regras mudaram, disseram-me. Não se admire o leitor se as vir junto à universidade: pelo andar das coisas já pouca diferença há entre o aluno da pré e o caloiro que se sujeita à praxe.
Numa estimável tentativa do ministério da educação em ensinar engenheiros a construir escolas, aprendi num curso que as vedações devem ser baixas. Argumentei que assim as bolas fugiam e perdiam-se por pomares, quintais e estradas, pois não saberiam os doutores do ministério que os miúdos jogavam à bola? Ficam traumatizados, explicaram-me, pensarão que estão num presídio. Tempos depois o mesmo ministério exigia vedações altas e devidamente quadriculadas de forma a impedir que as crianças pusessem nelas o pé e pulassem a cerca. Não era o perigo da bola, era o perigo de fugirem!!! Isto tudo muito bem verificado por um oficial do exército que juntava à reforma, a assessoria na segurança das construções escolares. Onde antes não podia haver grades, passava a haver a guerra das trincheiras…
Ao ver o estado em que esta gente deixou o país, e ao ver a forma como esta mesma gente (são sempre os mesmos, embora mudem de nome e de cara) tenta remediar o mal, cada vez me convenço mais que, como disse há dias o bispo do Porto, já não vêem um palmo à frente do nariz. Já não vêem e nunca viram!
Obama ganhou a uma terça-feira de Novembro, porque assim ficou decidido há mais de duzentos anos de acordo com a agenda agrícola duma América rural. Só mudarão quando houver razões de peso que não a míngua da ruralidade actual.
Nós, à míngua de tudo, não tarda estamos, como antigamente, agarrados à rabiça do arado, aguilhoando o muar. Prevendo esses tempos, e como dizia o Cândido, aconselhado por Pangloss, que precisamos de cuidar do jardim, nada melhor do que recorrer ao velho e imutável Borda d’Água, que diz para Novembro:
“No jardim estercar covas para a plantação na Primavera de árvores ou arbustos (se for preciso aproveitem o esterco que se tem feito). Estacar as plantas contra o vento. Plantar bolbos de flores. Podar as roseiras e plantar novas. Na horta semear agrião, alface, cenoura, couves. Plantar batatas, alho, couve temporã, tremoço. Semear fava, ervilha, e em camas quentes, alface, beterraba, cebola, nabiça, nabo, rabanete e tomate”.
E porque estamos cerca do São Martinho, há que “verificar as vasilhas do vinho novo”, que este ano promete ser do melhor. Valha-nos isso.



quarta-feira, 31 de outubro de 2012

FINADOS E ALOUINES


           Hallloween, ou dia das bruxas, como nós dizemos, celebra-se na véspera de Todos os Santos. O nome encontra explicações várias mas nada tem a ver com bruxas antes querendo significar vigília ou véspera de um evento importante, neste caso a celebração cristã do dia de Todos os Santos.

            Encostada à festa de Todos os Santos quis a Igreja colocar a comemoração da lembrança dos fiéis defuntos. Aqueles que, ao contrário dos santos, não têm o nome inscrito na memória colectiva. Este encosto aos santos não é inocente porque, coincidência ou não, calha mesmo na altura em que os povos celtas com a sua religião druida comemoravam as festas dos mortos. E por isso cá temos as bruxas, os monstros, o terror e a morte.

            A proibição protestante do culto aos mortos, que em determinadas alturas assumiu contornos dramáticos com a proibição de qualquer luto, provocou a diferença entre o carácter religioso, no mais autêntico sentido da palavra que significa re-ligar, da memória colectiva dos mortos, e o carácter lúdico sobre a morte, porque o riso espanta o medo.

Este diferendo entre as duas concepções cristãs pode estar na origem da tradição anglo-saxónica de pregar partidas a quem não ofereça os doces ou bolos tradicionais, pois parece que, aproveitando-se da tradição de pedir de porta em porta, aterrorizavam assim os católicos ingleses, durante um período em que as práticas católicas foram proibidas, mais por questões de ordem política que religiosas.

A prática das crianças pedirem de porta em porta por esta altura e o uso de máscaras lembrando a morte, não é, no entanto, exclusiva da tradição protestante e anglo-saxónica, tendo sido comum a quase toda a Europa. É o costume moderno de esconder a morte, no entanto, que nos faz correr o risco de perdermos a autenticidade desta data, trocando-a por um carnaval fora de época importado via América, esse grande país ainda adolescente. Afinal todos celebram a morte: uns lembrando os mortos, outro rindo do medo que ela provoca.

Independentemente da crença, ou descrença, de cada um, julgo que há mérito em lembrar colectivamente os mortos. É uma experiência sociológica interessante visitar os cemitérios nesse dia, principalmente os da província. A celebração não chega ao esplendor mexicano onde não faltam guloseimas, mas não deixa de ser um momento de convívio colectivo com a memória dos que partiram que não deixa ninguém indiferente.

Vai mal uma sociedade que, em nome duma produtividade duvidosa, impede o povo de se confrontar com a sua memória colectiva. Vai mal uma escola que inculca tradições estranhas sem sentido, esquecendo os nossos requiem, as nossas alminhas, os dobres a finados convidando a lembrar quem parte, as nossas visitas anuais aos cemitérios. Preservá-las porque são engraçadas? Não. Preservá-las porque dão coesão social, porque nos ligam como comunidade que somos com passado e presente, para podermos ter esperança no futuro.

Dizem que se morre duas vezes. A primeira quando fisicamente desaparecemos e a segunda quando deixamos de ser lembrados.

REMEMBER MElembra-te de mim, grita Dido quando sabe que vai morrer, na tragédia posta em música por Purcell. É o grito de todos aqueles que partiram: LEMBRA-TE DE MIM!

Para que lembremos os que foram, aqui fica o lamento de Dido na emocionante interpretação de Jessye Norman.
 

sábado, 27 de outubro de 2012

TEMPO DE ESPERANÇA



           Dizia santo Agostinho em relação ao tempo: Que assunto mais familiar e mais batido nas nossas conversas do que o tempo? Quando dele falamos compreendemos o que dizemos. Compreendemos também o que nos dizem quando dele nos falam.
Mas afinal o que é o tempo? Diz-nos de novo aquele santo e filósofo: Se ninguém me perguntar eu sei, porém, se quiser explicar a quem me perguntar, já não sei.
E eu também não sei, a não ser que hoje temos tempo acrescentado, porque muda a hora. Ganhamos mais uma para entramos naquela que se conhece como a hora de Inverno que é também a que mais próxima está da hora solar e por isso mais de acordo com o ritmo daquele astro.
E como comecei falando do tempo, não resisto a transcrever este pequeno excerto do “Eclesiastes”, um dos meus livros preferidos:
Para tudo há um momento
E um tempo para cada coisa que se deseja debaixo do céu:
Tempo para nascer e tempo para morrer,
Tempo para plantar e tempo para arrancar o que se plantou,
Tempo para matar e tempo para curar,
Tempo para destruir e tempo para edificar,
Tempo para chorar e tempo para rir,
Tempo para se lamentar e tempo para dançar,
Tempo para atirar pedras e tempo para as ajuntar,
Tempo para abraçar e tempo para evitar o abraço,
Tempo para procurar e tempo para perder,
Tempo para guardar e tempo para atirar fora,
Tempo para rasgar e tempo para coser,
Tempo para calar e tempo para falar,
Tempo para amar e tempo para odiar,
Tempo para a guerra e tempo para a paz.
 
           Que este tempo que nos é dado, seja um tempo de esperança.


domingo, 21 de outubro de 2012

AUTOS, GIL VICENTE E NÓS


Passeando pela blogosfera dei com uma adaptação de um pequeno excerto de um auto de Gil Vicente que, de tão actual, me obrigou a saber mais sobre o mesmo. O blog responsável é o “cinco dias” e o blogger António Paço. Prestados deste modo os créditos devidos vamos ao auto.

Gil Vicente escreveu-o para festejar o nascimento de um príncipe, D. Manuel filho de D. João III para cujo nascimento tinha também escrito o famoso “Monólogo do vaqueiro”. Pai e filho tiveram, em vez de fadas madrinhas, o mais lúcido e famoso dramaturgo português. Se lhes serviu de alguma coisa não sei, mas nós ficámos com o olhar crítico e sarcástico do poeta sobre todos nós porque esse olhar continua a fitar-nos para além do tempo. E o que diz sobre nós o poeta no auto que intitulou de Lusitânia?

Aconselho-vos a ler o que diz pois está digitalizado e disponível na net. Adiantarei somente que a 2ª parte relata o casamento da ninfa Lusitânia, filha de uma rainha berbere e de uma criatura marinha, com o cavaleiro grego chamado Portugal. Para estes eventos Lúcifer encarregou duas personagens, Belzebu e Dinato, do relato de tudo quanto vissem. Deixo-vos com um pequeno excerto desse relato escrito ontem, perdão, há 480 anos.

 

Ninguém – Que andas tu hi buscando?

Todo o Mundo – Mil cousas ando a buscar:

                            delas não posso achar,

                            porém ando porfiando,

                            por quão bom é porfiar.

Ninguém – Como hás nome cavaleiro?

Todo o Mundo – Eu hei nome Todo o Mundo,

                           e meu tempo todo inteiro

                           sempre é buscar dinheiro,

                           e sempre nisto me fundo.

Ninguém - Eu hei nome Ninguém,

                 e busco a Consciência.

 

Berzebu - Esta é boa experiência:

                Dinato, escreve isto bem.

Dinato - Que escreverei, companheiro?

Berzebu - Que Ninguém busca consciência,

                e Todo o Mundo dinheiro.

……………………

sábado, 13 de outubro de 2012

EUROPA

          A comunidade Europeia acaba de ganhar o prémio Nobel da paz. A alguns causou estranheza, a outros alegria, a muitos indiferença e ainda repulsa, dada a fraca companhia a que tal prémio anda associado. No meio desta crise e quando a ameaça da fome paira sobre alguns europeus é fácil esquecer as desgraças e misérias de uma Europa a que nos habituámos a olhar como o eldorado. É fácil esquecer que há 20 anos, nos Balcãs, os vizinhos matavam-se uns aos outros e há 25 anos, em Berlim, quem saltasse muros era morto. Se o prémio servir para abrir as nossas consciências para a construção dessa paz europeia, só possível com a erradicação de egoísmos (e nacionalismos exacerbados são também egoísmo), será bem vindo.
            Soube deste prémio quando visitava os marcos miliários que os romanos deixaram há quase dois mil anos nas estradas que construíram no mais recôndito das nossas serras. Daqueles vales e montes, onde há bem pouco só a pé ou sobre bestas se ia, chegava-se a Roma por estrada calcetada, capital desse projecto europeu construído pela força mas também com generosidade. A estrada vinha pacificar, civilizar mas também levar os recursos mineiros de que dispúnhamos. Pacificavam-se as tribos locais e os belicosos lusitanos que, ao contrário do que nos ensinaram, não estavam “postos em sossego” quando atormentados pelo gládio dos romanos, mas mordendo-lhes as canelas no vale do Pó enquanto acompanhavam os elefantes de Aníbal. Não seria a última vez que os “lusitanos” levariam elefantes a Roma, mas isso é outra história.
            Perdemos a soberania, gritaram eles e gritamos nós atormentados por uma dívida que não conseguimos pagar. Mas não foi com a exigência do pagamento da dívida que perdemos a soberania: foi quando usámos o dinheiro em bancos de jardim e rotundas. Quando se pede emprestado para comprar uma casa, pedimos o direito à mais elementar dignidade, mas quando pedimos para os cortinados perdemo-la, principalmente quando quem empresta não faz uso de cortinados por supérfluos. Por esta perda de soberania, há agora quem ache que é traição continuarmos europeus.
Afonso Henriques conquistou Lisboa com a ajuda de alemães e ingleses e construiu Alcobaça para a ordem de São Bento, outro importante projecto europeu cujo mote foi “ora et lavora”, o espírito e a matéria num só. Depois casou a filha com a Flandres que começava a cantar as lendas arturianas e a demanda do Graal. Em São Mamede venceu a mãe e um projecto nacionalista (que alguns sonham ressuscitar). Agradou aos barões locais e a Braga, mas no seu íntimo mais secreto escondia a vontade de continuar, em direcção ao mundo, aquela geira romana que terminava no Minho, transformando Portugal na vanguarda de um projecto europeu. O rosto da Europa é Portugal, diz Pessoa. Não pode ser traição!
            O legado europeu, da cultura aos direitos do homem, morre com a Europa, face à emergência brutal de interesses meramente económicos que até em insuspeitados regimes comunistas floresce. Portugal tem responsabilidades históricas na transmissão desse legado. Será traição deixar morrer esta demanda do graal: da sabedoria que trará a abundância.

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

O CINCO DE OUTUBRO MORREU?


           Por esta altura do ano a televisão brinda-nos com serviço público e explica-nos o que foi o 5 de Outubro, o de 1910 está bem de ver. Ontem não foi excepção. De um dos lados tivemos Mário Soares (vai assim sem título porque é republicano) que, esquecendo-se das bombas, dos tiros, das prisões arbitrárias, dos fuzilamentos, etc (e não queiram experimentar na pele um etc destes), foi dizendo que a 1ª república foi um mar de rosas, e a guerra de 14 é que estragou tudo. Depois ouvimos outro eminente republicano, Almeida Santos, dizer com um ligeiro gaguejar, que o rei D. Carlos só pensava em caça e era mulherengo e, por isso, muito pouco digno da função. Quando Almeida Santos foi a 2ª figura do estado cantou fados de Coimbra para o presidente chinês. Apeteceu-me dizer-lhe ontem que antes caçador e mulherengo que “entertainer” de ditadores. Depois, para não ser imparcial como cabe a uma televisão pública, falou o presuntivo herdeiro da coroa portuguesa para, no meio de banalidades, se referir à prisão dos pastorinhos de Fátima, coitadinhos. Também falou um fadista e amador de toiros metido em guerras dinásticas, armado em Macbeth ribatejano, que disse umas coisas que ninguém percebeu muito bem, sufragistas e coisas assim. Ao ouvir todo este disparate não pude deixar de me congratular pelo facto de que para o ano, com sorte, não tenhamos de ouvir do mesmo. Resta contudo a memória sentida dos heróis da rotunda que morreram pela república e de Paiva Couceiro que se bateu pelo seu rei. Nenhum dos que ontem falou honrou a memória desta gente.

            Mas vamos à data que eu digo que morreu. Não porque deixará de ser feriado, mas porque deixou, hoje, de fazer sentido, por culpa dos seus representantes que se esconderam da república que é o povo.

Quando D. Carlos desembarcou na Praça do Comércio naquele fatídico dia da sua morte, avisaram-no para se deslocar em carro fechado. Não quis. Iria em carro aberto pelo meio do povo. Mais de dois anos depois, o filho, um jovem de 20 anos, viu as paredes de sua casa serem bombardeadas pela marinha. Disse que ficava, mesmo que fosse a morte que o vinha buscar. É que os reis só têm aquele trabalho: o de serem reis. E se não podem estar no meio do povo exercendo o cargo, então mais vale que morram.

            Os representantes da república, ao contrário dos reis, estão nos negócios do estado como biscate ou como trampolim, por isso compreende-se que este ano o pátio dos bichos não fosse aberto ao público no palácio de Belém e as comemorações da república fossem celebradas, envergonhadamente, dentro de uma antiga garagem e não na praça que viu nascer a república. Eles, os representantes, sabem que já não podem estar no meio do povo e, ao contrário dos reis, não estão dispostos a sofrer as consequências.

            A monarquia caiu com a morte do rei ali pertinho do lugar onde hoje se comemorou com receio do povo. Será que aquele local marca também o fim da república?

sábado, 29 de setembro de 2012

DA INCOMPETÊNCIA


           A semana que passou foi pródiga em incompetência. Podemos mesmo dizer que assistimos a um autêntico festival de como não se deve fazer.

Começo pelo caso mais recente, quando todos pudemos assistir na pantalha ao dislate de um eminente presidente de um conselho de ética. Não querendo dizer o que disse, acabou a dizer aquilo que, infelizmente, todos já sabemos: que não é possível todos terem acesso a tudo em termos de saúde. O que se esperaria de um responsável por lições de ética é que dissesse que temos de fazer com que seja possível que todos tenham acesso a tudo em termos de saúde, cabendo depois aos vários intervenientes a escolha do mais adequado acesso. Foi incompetente.

          Também pela televisão que nos invade a casa diariamente pudemos assistir a um mau filme de série B. Um jovem estudante de um instituto onde se ensina, ou devia ensinar, ciências sociais e políticas, no átrio desse instituto, assobiou e titubeou um acinte à passagem do primeiro ministro, não com o objectivo de o insultar, mas tão só para impressionar duas ou três estudantes que por ali deambulavam. O chefe da segurança do governante, pago com o dinheiro de todos nós, não teve a competência necessária para avaliar que o assobio e o titubeio não representavam qualquer perigo para a segurança do homem a quem devia proteger. Vai daí, abandona o exercício dessa segurança, e, numa tentativa de impressionar as meninas da casa dos segredos, atira-se ao jovem e aos jornalistas que o filmavam, qual rambo hollywodesco, esquecendo-se do sítio onde estava e do homem a quem devia proteger, pondo em perigo quer o físico quer a imagem do dito. De ora avante, qualquer terrorista competente ficou a saber que lhe basta provocar uma distracção para que o governante de todos nós fique à mercê dos seus actos, porque o chefe da sua segurança traz ao peito o nome: INCOMPETENTE.

          Quanto a um estudante de ciências sociais e políticas esperar-se-ia que devesse saber como organizar uma arruaça, e que as meninas de hoje já não se impressionam com assobios. Devia também saber que dentro do átrio de uma universidade o estudante tem imunidade perante as forças policiais e que um segurança só tem autoridade para defender o seu chefe e não para atacar, pelo que lhe competia ter recusado acompanhar o polícia com palmadinhas nas costas, devendo até provocar para que este lhe desse umas duas ou três bastonadas, para aumento do prestígio aos olhos do belo sexo. Um estudante e um polícia, nestas alturas, devem comportar-se como o cão e o gato, raios. E os estudantes de uma escola, mesmo que simpatizantes do governante e da sua segurança, devem, em nome da competente solidariedade estudantil, defender um colega, senão camarada, da repressão policial, e esquecer por uns momentos as mensagens do telemóvel.

          Aos directores dos repórteres assaltados competia mostrar o fo…, perdão, a cara do incompetente segurança, visto que não tem direito à privacidade num lugar público exercendo funções públicas. Ao não mostrarem, foram incompetentes. Estudantes, segurança e jornalistas, uma mão cheia de incompetentes.

          Espero agora que o senhor primeiro-ministro seja suficientemente competente para demitir o homem que tão incompetentemente pôs em causa a sua segurança e a sua imagem.

          Ao senhor reitor da universidade insultada espera-se a competência necessária para apresentar um protesto, demitindo-se se não for atendido. É que no tempo do fascismo, um reitor fascista teve a decência e a competência para se demitir por causa de uma carga policial dentro do recinto universitário. Que o fascismo não dê lições de competência à democracia é o mínimo que devemos esperar.

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

O PARTENON E OS SEUS FRISOS

          Quando Fernando de Saxe-Coburgo chegou a Portugal para casar com a rainha D. Maria II, não gostou de ver o desprezo que o governo nacional votava aos monumentos do país, muitos deles abandonados devido ao decretado fim das ordens religiosas. Foi o caso do mosteiro da Batalha que, dizem as más línguas, esteve a ponto de ser desmantelado para venda da sua pedra. A este príncipe austríaco se deve assim o restauro, aos nossos olhos actuais desastrado, daquele belo monumento. Destruiu-se o barroco, o maneirista e o tecido urbano envolvente, mas preservou-se o gótico e o manuelino tão ao gosto romântico da época. Foi o nosso primeiro restauro monumental oficial. Por essa época Vítor Hugo chamava à razão as autoridades de Paris pelo estado deplorável da igreja de Notre Dame, uma das mais belas igrejas góticas (das que conheço a mais bela), promovendo o interesse dos franceses para o seu restauro, depois de prostitutas terem dançado sobre os seus altares. Muito antes destes acontecimentos, Lord Elgin, numa leitura talvez abusiva da autorização dada pelo sultão de Constantinopla, levou grande parte dos frisos do Partenon para Londres e, por essa razão, estão hoje no museu britânico. A Grécia, mais tarde independente dos turcos, não gostou.
          Vem isto a propósito de um convite feito por um amigo para assinar uma petição exigindo o retorno a Atenas dos frisos. Confesso que hesitei em fazê-lo. São magníficos e compreende-se que os herdeiros o queiram de volta. São uma das razões que me obrigam a voltar a Londres para os ver com redobrada atenção. A sua fruição, a par de outras belas e magníficas peças, é gratuita: o governo de Sua Majestade teve o bom senso de proporcionar gratuitamente a fruição de todo o espólio “roubado”. E roubaram porque foram talvez os primeiros a perceber da sua importância. Importámo-nos com a Batalha antes de Fernando, um germânico romântico, a ver e admirar?
          O Partenon, templo pagão, foi igreja cristã, sofreu tratos de polé dos bizantinos e depois os turcos fizeram nele uma mesquita e erigiram um minarete, respeitando-lhe as paredes, até que se lembraram de o transformar em paiol de munições, que um canhão veneziano, com grande pontaria, fez ir pelos ares, juntamente com o telhado, meia dúzia de colunas e umas poucas de estátuas. O “roubo” dos frisos foi assim um furto a quem não lhes dava importância.
          O abuso de lord Elgin não foi, ao tempo, criticado senão pelos próprios ingleses, desde logo por Byron que, não obstante, achou Sintra mal empregada para portugueses. Se eu fosse inglês recusaria a entrega dos famosos mármores. Se fosse grego exigiria a sua restituição. Julgo que ingleses e gregos são suficientemente adultos e inteligentes para encontrarem uma solução a contento, e estando os mármores à disposição de quantos os queiram apreciar, não vejo porque tenha que assinar petições a dar lições a gregos e ingleses.
          E acabo como comecei: ao nosso Fernando, quando viúvo da rainha, ofereceram os gregos o trono da Grécia. Recusou! 

sábado, 22 de setembro de 2012

EM BELÉM


Sócrates encontrava-se em Belém. Viera protestar e aproveitara para saborear os pastéis, trincando aqui e acolá a massa estaladiça enquanto, com a língua, sorvia o creme dourado que escorria. Depois de deglutir o bocado trincado, interrompia o gozo das papilas gustativas para exercitar as cordas vocais gritando insultos à troika, aos conselheiros, aos governantes e ao estúpido do garoto que deixara cair o gelado sobre os sapatos acabadinhos de engraxar. Xantipa proibira-o terminantemente de ir a Belém sem os sapatos a brilhar. O que ela não precisava, dizia, era que a Maria que lá vivia, a acusasse de não cuidar convenientemente do seu homem, e Sócrates não teve outro remédio senão dar-lhes uma boa escovadela.
          Entre um grito e uma trincadela viu, à sua frente, Aristófanes gritando a ponto de enrouquecer.
-       BANDIDOS!
-       Aristófanes, companheiro, tu por aqui?
-       Sócrates, amigo, onde querias que estivesse? Vir hoje a Belém era um imperativo categórico.
-       Deixa-te disso, que o filósofo aqui sou eu. Admiro-me porque pensei que tinhas entrado na casa dos segredos.
-       Nem me fales nisso. Candidatei-me mas não fui aceite. Se me aguentasse pelo menos duas semanas, sempre me aliviava as contas em atraso, mas não. Exigiram-me exames médicos e… olha, foi uma desgraça.
-       Não me digas? E que tens tu?
-       O fígado!
-       Que tens fígado já eu sabia. E depois?
-       É isso mesmo, já quase não o tenho. Mas não é tudo, em compensação os pulmões têm mais alcatrão que as ruas do meu bairro.
-       E já foste ao médico?
-       Já. Um bandido… BANDIDO – aproveitou Aristófanes para gritar ao ministro que subia a rampa entre o brilho dos capacetes da guarda republicana, e continuou.
-       Um bandido. Vê lá tu que me pôs a pão e água e proibiu-me de frequentar a tabacaria, aquela do Camões, que tem uns cubanos que não se vendem sem primeiro passarem no teste do Fidel.
-       Não me digas? Ele há coisas. Mas vejo ali o dono do restaurante que te pôs o fígado nesse estado. Porque não aproveitas e dizes-lhe umas verdades? Porque não o acusas dos teus males?
-       Tu não bates bem Sócrates. Então o homem só queria o meu bem. Além disso está aqui na manif, não está. Só pode ser boa pessoa.
-       Mas olha, também ali está o sócio da tabacaria do Camões. Se fosse a ti ia lá e enfiava-lhe um charuto pela boca dentro.
-       Coitado, tão bom homem. Vê lá tu que até lhe pagam uma fortuna para gerir uma fundação cultural.
-       Mas então aguenta-te com o médico e com a cura.
-       Mas Sócrates, aguentar eu aguentava, mas o tratamento mata-me. Que hei-de fazer?
-       Olha, grita pr’aí. Grita alto, Aristófanes, porque ainda agora atravessou o Pátio dos Bichos o conselheiro que te matou o fígado enquanto te matava o bicho. Mas se eu fosse a ti gritava também com aqueles dois que ali estão. Se o médico não presta, olha que aqueles fizeram um belo serviço em te porem nesse estado.
-       Achas?
-       Se não gritas com eles, ainda os chamam para te tratarem da saúde. E entre uns e outros o diabo que escolha.
Aristófanes olhou, desconsolado, o amigo, e disse:
-       Companheiro Sócrates, agora me lembro, não estavas em Paris?
-       Eh. Calma aí. Esse usurpou-me o nome. E fala baixo.
-       Porquê?
-       Porque por aqui a memória é curta. Se me confundem com o outro, ainda me chamam a governar.
-       BANDIDO!
-       GATUNO!