quarta-feira, 31 de outubro de 2012

FINADOS E ALOUINES


           Hallloween, ou dia das bruxas, como nós dizemos, celebra-se na véspera de Todos os Santos. O nome encontra explicações várias mas nada tem a ver com bruxas antes querendo significar vigília ou véspera de um evento importante, neste caso a celebração cristã do dia de Todos os Santos.

            Encostada à festa de Todos os Santos quis a Igreja colocar a comemoração da lembrança dos fiéis defuntos. Aqueles que, ao contrário dos santos, não têm o nome inscrito na memória colectiva. Este encosto aos santos não é inocente porque, coincidência ou não, calha mesmo na altura em que os povos celtas com a sua religião druida comemoravam as festas dos mortos. E por isso cá temos as bruxas, os monstros, o terror e a morte.

            A proibição protestante do culto aos mortos, que em determinadas alturas assumiu contornos dramáticos com a proibição de qualquer luto, provocou a diferença entre o carácter religioso, no mais autêntico sentido da palavra que significa re-ligar, da memória colectiva dos mortos, e o carácter lúdico sobre a morte, porque o riso espanta o medo.

Este diferendo entre as duas concepções cristãs pode estar na origem da tradição anglo-saxónica de pregar partidas a quem não ofereça os doces ou bolos tradicionais, pois parece que, aproveitando-se da tradição de pedir de porta em porta, aterrorizavam assim os católicos ingleses, durante um período em que as práticas católicas foram proibidas, mais por questões de ordem política que religiosas.

A prática das crianças pedirem de porta em porta por esta altura e o uso de máscaras lembrando a morte, não é, no entanto, exclusiva da tradição protestante e anglo-saxónica, tendo sido comum a quase toda a Europa. É o costume moderno de esconder a morte, no entanto, que nos faz correr o risco de perdermos a autenticidade desta data, trocando-a por um carnaval fora de época importado via América, esse grande país ainda adolescente. Afinal todos celebram a morte: uns lembrando os mortos, outro rindo do medo que ela provoca.

Independentemente da crença, ou descrença, de cada um, julgo que há mérito em lembrar colectivamente os mortos. É uma experiência sociológica interessante visitar os cemitérios nesse dia, principalmente os da província. A celebração não chega ao esplendor mexicano onde não faltam guloseimas, mas não deixa de ser um momento de convívio colectivo com a memória dos que partiram que não deixa ninguém indiferente.

Vai mal uma sociedade que, em nome duma produtividade duvidosa, impede o povo de se confrontar com a sua memória colectiva. Vai mal uma escola que inculca tradições estranhas sem sentido, esquecendo os nossos requiem, as nossas alminhas, os dobres a finados convidando a lembrar quem parte, as nossas visitas anuais aos cemitérios. Preservá-las porque são engraçadas? Não. Preservá-las porque dão coesão social, porque nos ligam como comunidade que somos com passado e presente, para podermos ter esperança no futuro.

Dizem que se morre duas vezes. A primeira quando fisicamente desaparecemos e a segunda quando deixamos de ser lembrados.

REMEMBER MElembra-te de mim, grita Dido quando sabe que vai morrer, na tragédia posta em música por Purcell. É o grito de todos aqueles que partiram: LEMBRA-TE DE MIM!

Para que lembremos os que foram, aqui fica o lamento de Dido na emocionante interpretação de Jessye Norman.
 

sábado, 27 de outubro de 2012

TEMPO DE ESPERANÇA



           Dizia santo Agostinho em relação ao tempo: Que assunto mais familiar e mais batido nas nossas conversas do que o tempo? Quando dele falamos compreendemos o que dizemos. Compreendemos também o que nos dizem quando dele nos falam.
Mas afinal o que é o tempo? Diz-nos de novo aquele santo e filósofo: Se ninguém me perguntar eu sei, porém, se quiser explicar a quem me perguntar, já não sei.
E eu também não sei, a não ser que hoje temos tempo acrescentado, porque muda a hora. Ganhamos mais uma para entramos naquela que se conhece como a hora de Inverno que é também a que mais próxima está da hora solar e por isso mais de acordo com o ritmo daquele astro.
E como comecei falando do tempo, não resisto a transcrever este pequeno excerto do “Eclesiastes”, um dos meus livros preferidos:
Para tudo há um momento
E um tempo para cada coisa que se deseja debaixo do céu:
Tempo para nascer e tempo para morrer,
Tempo para plantar e tempo para arrancar o que se plantou,
Tempo para matar e tempo para curar,
Tempo para destruir e tempo para edificar,
Tempo para chorar e tempo para rir,
Tempo para se lamentar e tempo para dançar,
Tempo para atirar pedras e tempo para as ajuntar,
Tempo para abraçar e tempo para evitar o abraço,
Tempo para procurar e tempo para perder,
Tempo para guardar e tempo para atirar fora,
Tempo para rasgar e tempo para coser,
Tempo para calar e tempo para falar,
Tempo para amar e tempo para odiar,
Tempo para a guerra e tempo para a paz.
 
           Que este tempo que nos é dado, seja um tempo de esperança.


domingo, 21 de outubro de 2012

AUTOS, GIL VICENTE E NÓS


Passeando pela blogosfera dei com uma adaptação de um pequeno excerto de um auto de Gil Vicente que, de tão actual, me obrigou a saber mais sobre o mesmo. O blog responsável é o “cinco dias” e o blogger António Paço. Prestados deste modo os créditos devidos vamos ao auto.

Gil Vicente escreveu-o para festejar o nascimento de um príncipe, D. Manuel filho de D. João III para cujo nascimento tinha também escrito o famoso “Monólogo do vaqueiro”. Pai e filho tiveram, em vez de fadas madrinhas, o mais lúcido e famoso dramaturgo português. Se lhes serviu de alguma coisa não sei, mas nós ficámos com o olhar crítico e sarcástico do poeta sobre todos nós porque esse olhar continua a fitar-nos para além do tempo. E o que diz sobre nós o poeta no auto que intitulou de Lusitânia?

Aconselho-vos a ler o que diz pois está digitalizado e disponível na net. Adiantarei somente que a 2ª parte relata o casamento da ninfa Lusitânia, filha de uma rainha berbere e de uma criatura marinha, com o cavaleiro grego chamado Portugal. Para estes eventos Lúcifer encarregou duas personagens, Belzebu e Dinato, do relato de tudo quanto vissem. Deixo-vos com um pequeno excerto desse relato escrito ontem, perdão, há 480 anos.

 

Ninguém – Que andas tu hi buscando?

Todo o Mundo – Mil cousas ando a buscar:

                            delas não posso achar,

                            porém ando porfiando,

                            por quão bom é porfiar.

Ninguém – Como hás nome cavaleiro?

Todo o Mundo – Eu hei nome Todo o Mundo,

                           e meu tempo todo inteiro

                           sempre é buscar dinheiro,

                           e sempre nisto me fundo.

Ninguém - Eu hei nome Ninguém,

                 e busco a Consciência.

 

Berzebu - Esta é boa experiência:

                Dinato, escreve isto bem.

Dinato - Que escreverei, companheiro?

Berzebu - Que Ninguém busca consciência,

                e Todo o Mundo dinheiro.

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sábado, 13 de outubro de 2012

EUROPA

          A comunidade Europeia acaba de ganhar o prémio Nobel da paz. A alguns causou estranheza, a outros alegria, a muitos indiferença e ainda repulsa, dada a fraca companhia a que tal prémio anda associado. No meio desta crise e quando a ameaça da fome paira sobre alguns europeus é fácil esquecer as desgraças e misérias de uma Europa a que nos habituámos a olhar como o eldorado. É fácil esquecer que há 20 anos, nos Balcãs, os vizinhos matavam-se uns aos outros e há 25 anos, em Berlim, quem saltasse muros era morto. Se o prémio servir para abrir as nossas consciências para a construção dessa paz europeia, só possível com a erradicação de egoísmos (e nacionalismos exacerbados são também egoísmo), será bem vindo.
            Soube deste prémio quando visitava os marcos miliários que os romanos deixaram há quase dois mil anos nas estradas que construíram no mais recôndito das nossas serras. Daqueles vales e montes, onde há bem pouco só a pé ou sobre bestas se ia, chegava-se a Roma por estrada calcetada, capital desse projecto europeu construído pela força mas também com generosidade. A estrada vinha pacificar, civilizar mas também levar os recursos mineiros de que dispúnhamos. Pacificavam-se as tribos locais e os belicosos lusitanos que, ao contrário do que nos ensinaram, não estavam “postos em sossego” quando atormentados pelo gládio dos romanos, mas mordendo-lhes as canelas no vale do Pó enquanto acompanhavam os elefantes de Aníbal. Não seria a última vez que os “lusitanos” levariam elefantes a Roma, mas isso é outra história.
            Perdemos a soberania, gritaram eles e gritamos nós atormentados por uma dívida que não conseguimos pagar. Mas não foi com a exigência do pagamento da dívida que perdemos a soberania: foi quando usámos o dinheiro em bancos de jardim e rotundas. Quando se pede emprestado para comprar uma casa, pedimos o direito à mais elementar dignidade, mas quando pedimos para os cortinados perdemo-la, principalmente quando quem empresta não faz uso de cortinados por supérfluos. Por esta perda de soberania, há agora quem ache que é traição continuarmos europeus.
Afonso Henriques conquistou Lisboa com a ajuda de alemães e ingleses e construiu Alcobaça para a ordem de São Bento, outro importante projecto europeu cujo mote foi “ora et lavora”, o espírito e a matéria num só. Depois casou a filha com a Flandres que começava a cantar as lendas arturianas e a demanda do Graal. Em São Mamede venceu a mãe e um projecto nacionalista (que alguns sonham ressuscitar). Agradou aos barões locais e a Braga, mas no seu íntimo mais secreto escondia a vontade de continuar, em direcção ao mundo, aquela geira romana que terminava no Minho, transformando Portugal na vanguarda de um projecto europeu. O rosto da Europa é Portugal, diz Pessoa. Não pode ser traição!
            O legado europeu, da cultura aos direitos do homem, morre com a Europa, face à emergência brutal de interesses meramente económicos que até em insuspeitados regimes comunistas floresce. Portugal tem responsabilidades históricas na transmissão desse legado. Será traição deixar morrer esta demanda do graal: da sabedoria que trará a abundância.

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

O CINCO DE OUTUBRO MORREU?


           Por esta altura do ano a televisão brinda-nos com serviço público e explica-nos o que foi o 5 de Outubro, o de 1910 está bem de ver. Ontem não foi excepção. De um dos lados tivemos Mário Soares (vai assim sem título porque é republicano) que, esquecendo-se das bombas, dos tiros, das prisões arbitrárias, dos fuzilamentos, etc (e não queiram experimentar na pele um etc destes), foi dizendo que a 1ª república foi um mar de rosas, e a guerra de 14 é que estragou tudo. Depois ouvimos outro eminente republicano, Almeida Santos, dizer com um ligeiro gaguejar, que o rei D. Carlos só pensava em caça e era mulherengo e, por isso, muito pouco digno da função. Quando Almeida Santos foi a 2ª figura do estado cantou fados de Coimbra para o presidente chinês. Apeteceu-me dizer-lhe ontem que antes caçador e mulherengo que “entertainer” de ditadores. Depois, para não ser imparcial como cabe a uma televisão pública, falou o presuntivo herdeiro da coroa portuguesa para, no meio de banalidades, se referir à prisão dos pastorinhos de Fátima, coitadinhos. Também falou um fadista e amador de toiros metido em guerras dinásticas, armado em Macbeth ribatejano, que disse umas coisas que ninguém percebeu muito bem, sufragistas e coisas assim. Ao ouvir todo este disparate não pude deixar de me congratular pelo facto de que para o ano, com sorte, não tenhamos de ouvir do mesmo. Resta contudo a memória sentida dos heróis da rotunda que morreram pela república e de Paiva Couceiro que se bateu pelo seu rei. Nenhum dos que ontem falou honrou a memória desta gente.

            Mas vamos à data que eu digo que morreu. Não porque deixará de ser feriado, mas porque deixou, hoje, de fazer sentido, por culpa dos seus representantes que se esconderam da república que é o povo.

Quando D. Carlos desembarcou na Praça do Comércio naquele fatídico dia da sua morte, avisaram-no para se deslocar em carro fechado. Não quis. Iria em carro aberto pelo meio do povo. Mais de dois anos depois, o filho, um jovem de 20 anos, viu as paredes de sua casa serem bombardeadas pela marinha. Disse que ficava, mesmo que fosse a morte que o vinha buscar. É que os reis só têm aquele trabalho: o de serem reis. E se não podem estar no meio do povo exercendo o cargo, então mais vale que morram.

            Os representantes da república, ao contrário dos reis, estão nos negócios do estado como biscate ou como trampolim, por isso compreende-se que este ano o pátio dos bichos não fosse aberto ao público no palácio de Belém e as comemorações da república fossem celebradas, envergonhadamente, dentro de uma antiga garagem e não na praça que viu nascer a república. Eles, os representantes, sabem que já não podem estar no meio do povo e, ao contrário dos reis, não estão dispostos a sofrer as consequências.

            A monarquia caiu com a morte do rei ali pertinho do lugar onde hoje se comemorou com receio do povo. Será que aquele local marca também o fim da república?