quinta-feira, 30 de março de 2017

UMA QUESTÃO DE BUSTO


Primeiro embirraram com a estátua por causa dos atributos do moço. Que não era tão grande, diziam uns, que era maior diziam outros, e todos asseguravam estarem certos, e a gente a pensar que tanta certeza só podia vir do facto de terem medido e sentido o peso. Refiro-me aos atributos…
Agora é o sorriso que não é tão rasgado ou torcido, que os olhinhos não se juntam assim e que há pelo menos duas rugas a mais.
Com tanto Miguelângelo a dar palpites, não se arrisque o Medina a contar a verdade sobre a estátua do Rossio e se descubra que em vez do imperador do Brasil, lá está o do México, que nem Messi em vez de Ronaldo.
Uma dúvida nos assalta: será que o cavalo do D. José está parecido?

domingo, 26 de março de 2017

À SOMBRA DAS TÍLIAS OU DOS JACARANDÁS HÁ SEMPRE ONDE GASTAR O DINHEIRO DE UM HOLANDÊS


Há três anos visitei Berlim. Se fosse berlinense, visitasse Lisboa e visse as obras nos pavimentos das suas avenidas ficaria pensando por que raio Berlim não tem pavimentos tão bons e bonitos. É certo que Berlim era um estaleiro quando desembarquei no seu velho e antiquado aeroporto, ainda não substituído pelo novo que se encontra incrivelmente atrasado. As velhas tílias sobreviventes dos bombardeamentos tremiam à passagem dos bulldozers, e o telhado da mais famosa sala de concertos, a Filarmonia, metia água. Por isso não sei se a Uter den linden ficou tão linda como o Cais do Sodré ou como a Avenida da República com as suas tipuanas e jacarandás. Tenho a certeza que o berlinense que nos visitasse não daria razão ao holandês, e confirmaria que o dinheiro não é gasto em bebidas e muito menos em mulheres. Um país de trolhas tem sempre obras onde gastar neste imenso resort em que nos transformaram. Logo, logo irão terminar uma parede lá para o lado da Ajuda, cuja falta para a cidade é igual à de uma viola num enterro.
Em todo o caso, o sistema público de transportes de Berlim é fantástico, enquanto em Lisboa já é um prazer andar a pé e de bicicleta, pelo que ninguém precisa de uma boa rede de transportes públicos, e sempre fica mais barato ao cidadão que pode assim gastar o dinheiro noutras coisas.
Entre a sobriedade calvinista e luterana e o gosto barroco dos católicos existe uma disputa que se acentuou quando católicos e protestantes deixaram de estar dispostos a pagar “indulgências” para as obras do estado. É que ninguém se salva pelas “obras”, dizem eles e a epístola aos Efésios!

Foto: túmulo de Frederico II da Prússia, “O Grande”

domingo, 12 de março de 2017

FÁTIMA


Penso noventa e nove vezes e nada descubro; deixo de pensar, mergulho em profundo silêncio - e eis que a verdade se me revela.
Albert Einstein

            Fátima, isto é, as aparições em Fátima, celebra um século de vida. Acredite-se ou não, o fenómeno reveste-se de uma tal importância que deve ser comemorado e, sobretudo, estudado. O desinteresse, para não chamar preconceito, dos intelectuais tem impedido o estudo académico do que ali se passou (e do que ali se passa), deixando que diferentes apologéticas, mais ou menos sérias, ou mais ou menos burlonas, se apoderassem de Fátima. É necessário, urgente e útil o estudo científico dos factos que ali ocorreram, desde logo separar factos de interpretações.
Fátima não é dogma de Fé, o que significa que nenhum católico está obrigado a acreditar nas aparições. Portanto acreditar ou não, é uma questão de fé pessoal. O que não significa que só se deve aceitar o fenómeno quando nele se acredita. E em que é que se acredita? Que foi Nossa Senhora, mãe de Jesus, e um anjo quem apareceu aos três pastorinhos de Fátima. Ora é esta crença que é uma questão de Fé. Outra, um pouco diferente, é acreditar que um fenómeno ali se deu e que os pastorinhos de Fátima foram testemunhas e/ou protagonistas. Quando falo de estudo é sobre o fenómeno que falo e não sobre a interpretação mariana, uma vez que as questões de Fé não se provam, sentem-se.
Dizer que o fenómeno não passa de uma manipulação da Igreja, como oiço por vezes dizer, é tão absurdo, tendo em conta as circunstâncias em que se deu e os relatos comprovados, como absurdo pode parecer a um não crente o facto de Nossa Senhora poder aparecer sobre os ramos de uma azinheira. É por isso que me tira do sério ver um padre, no caso o padre Mário de Oliveira, mais conhecido por padre da Lixa, negar o fenómeno para que se dê, nas suas palavras, uma limpeza mental, como se achasse que Nossa Senhora teria de lhe pedir, a ele, padre da Lixa, autorização para aparecer em cima das árvores, só porque ele tem o poder de na mesa do altar realizar diariamente o absurdo milagre de transformar um bocado de pão e uma porção de vinho no corpo e sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, o que em matéria de milagres é mais do que suficiente, no dizer dele. Há absurdos para todos os gostos. A mim não me choca a crença em absurdos.
E não houve manipulação? Estudando, mesmo que superficialmente, o assunto parece-me claro que houve, e não foi pouca. Principalmente a partir do surgimento do Estado Novo. O fenómeno, tudo indicava, prendia-se com a aflição em que vivia o mundo e Portugal durante a 1ª guerra mundial. A chamada revolução de Outubro é posterior, pois só se dá em Novembro (diferença entre o calendário juliano e o gregoriano), pelo que as referências ao comunismo não seriam entendidas pelo Povo nem pelos pastorinhos, e começam a aparecer mais tarde. Parece-me evidente a manipulação sobre os malefícios do comunismo quando não se evidencia a mesma preocupação sobre os malefícios do fascismo e nazismo. Soa a manipulação por todo os poros a célebre carta de Lúcia sobre a providência divina para com Salazar. O facto de reconhecer a manipulação não impede a crença no fenómeno, primeiro, e na interpretação mariana, depois. Porque também não deixa de ser verdade que, sabendo-se hoje o que se sabe, não é difícil imaginar a aflição de Nossa Senhora, ou da entidade que nos visitou, tendo em conta a monstruosidade em que o mundo e a Europa se transformaram após a primeira guerra mundial, daí o constante apelo à oração que é um meio para alterar o estado de consciência de cada um. É, pois, ao estudo do fenómeno que apelo, que ao da manipulação já tem estudiosos que sobram.
E afinal que fenómeno se trata? Primeiro o da aparição de um anjo nas imediações da Cova da Iria, um ano antes de Fátima. Aparição presenciada não só pelos pastorinhos, mas por outras crianças. Há quem afirmasse ter visto a hóstia aparecer na boca dos pastorinhos quando o anjo lhes dava a comunhão, apesar de não conseguirem ver o próprio anjo. Depois foram as aparições de uma senhora tão luminosa como o Sol. “Ai, que Senhora tão linda! Ai, que Senhora tão bonita”, exclamava Jacinta, a jovem que tanto sofreria meses depois. Tanto quanto julgo saber ninguém, para além dos pastorinhos, conseguiu ver as aparições da senhora tão linda, mas em Outubro dá-se o milagre do sol testemunhado por uma multidão que ali acorreu quase por milagre, como por milagre se espalhou aquela notícia num Portugal analfabeto, sem acessibilidades, e sem redes sociais modernas. O aparecimento daquela multidão na Cova da Iria é já por si um milagre. Esse dia foi testemunhado por pessoas insuspeitas e imparciais, como o jornalista do Século. Há também relatos de avistamento do fenómeno fora da Cova da Iria, a quilómetros de distância (há quem fala em 40 km e tenha explicação científica para isso). Diz-se também que os centros espíritas que abundavam pelo país (mais tarde reprimidos pelo Estado Novo), teriam previsto o fenómeno e para que não houvesse dúvidas, fizeram publicar anúncios com essas previsões. É fenómeno merecedor de estudo pois a simples teoria da manipulação esbarra com as evidências.
A cova da Iria é uma formação geológica característica da região. O nome de Iria talvez se refira à santa do mesmo nome nascida ali perto, em Tomar, durante a ocupação bárbara. Mas é estranho que se refiram à cova da Iria e não a Santa Iria. O Povo não costuma ser desrespeitoso. É assunto para estudar quem era esta Iria. E Fátima é, nada mais nada menos, que a filha do profeta Maomé casada com o 4º califa. O topónimo é claramente mouro e mesmo que a lenda da princesa moura Fátima casada com o conde de Ourém seja verdadeira, o topónimo refere-se sempre àquela filha do profeta do Islão. É uma curiosidade curiosa, passe o pleonasmo. Fátima fica exactamente a meio caminho entre o Norte e o Sul de Portugal, outra curiosidade curiosa. Situa-se no cimo da Serra de Aire conhecida pelas impressionantes grutas e pelas pegadas de dinossáurios aparecidas numa pedreira. Num exagero poético poderia dizer que o chão de Portugal é feito com as pedras da Serra de Aire. Talvez por isso os nossos corações se dirijam para Fátima.
Se comecei por me queixar da falta do interesse intelectual e científico por Fátima, acabo fazendo referência a um livro e tese de doutoramento em Geografia apresentado à faculdade de letras de Coimbra, que me deixou curioso e com vontade de o ler: “SANTOS, Maria da Graça Lopes da Silva Mouga Poças - Espiritualidade e território: estudo geográfico de Fátima. Coimbra, 2004”.
Esta é a minha modesta contribuição para a comemoração do centenário de Fátima. Um fenómeno surpreendentemente popular que apesar da manipulação, nunca verdadeiramente se deixou apanhar pela ortodoxia disciplinada da Igreja, e nunca se intimidou com a soberba intelectual de quem tem da cultura e da realidade a visão estreita de sombras projetadas em cavernas filosóficas.

terça-feira, 7 de março de 2017

O MODELO DE UNIVERSITÁRIO DOS ESTUDANTES DA NOVA


If it looks like a duck, swims like a duck, and quacks like a duck, then it probably is a duck.
            Não partilho da simpatia política de Jaime Nogueira Pinto, mas reconheço-lhe uma extraordinária capacidade para pensar o seu tempo. Para o contradizer convinha ouvir o que tem para dizer. Se não possuo a clarividência de Nogueira Pinto sei, no entanto, que quando se impede a livre expressão, dentro de uma universidade ou fora dela, se está a praticar um acto ditatorial, fascista e antidemocrático. Os estudantes que impediram uma conferência, agem como ditadores, fascistas e antidemocráticos. Não me interessa se são militantes do Bloco ou de outra coisa qualquer. Se se parecem com ditadores, fascistas e antidemocráticos e agem como tal, então é porque são ditadores, fascistas e antidemocráticos.
            Dizem que se tratava de um acto colonialista, logo eles que são marxistas e não entendem a contradição entre serem ao mesmo tempo marxistas e anticolonialistas, porque conhecem do mundo só o que a cartilha lhes foi dizendo. Uma coisa conseguiram, transformar o nosso espaço universitário para o nível do pior que a universidade americana tem.
Ben Carson, secretário para a habitação de Trump, negro (para o caso interessa), disse que os escravos vieram a bordo de navios como imigrantes em busca do sonho americano. Anteriormente afirmou que José do Egipto, filho de Jacob e Raquel, foi quem construiu as pirâmides para armanezar grão e não para sepultar os faraós mortos (A proporção entre espaço vazio e espaço ocupado pela construção tornam ridícula qualquer ideia de utilização para armazenar seja o que for, para além de as pirâmides serem muito anteriores a José). Disse também que o Obamacare foi a pior coisa que aconteceu na América depois da escravatura. Este senhor é, pasme-se, um brilhante e competente neurocirurgião e professor universitário. É por este tipo de universitário que alguns estudantes da Universidade Nova de Lisboa anseiam: técnicos formatados para pensarem de acordo com a cartilha que lhes é transmitida.

sábado, 4 de março de 2017

GASTRONOMIA BÍBLICA 2 - QUEIJO ABEL


 “Génesis 4, 2: «Depois, deu também à luz Abel, irmão de Caim. Abel foi pastor, e Caim, lavrador.”
Caim matou Abel por inveja. Como é que Abel era pastor e Caim lavrador, quando o estágio humano se limitava ainda à recolecção, é um mistério. Mas o importante da história é que Adão pastoreava o seu gado não estabelecendo fronteiras, percorrendo o território e preservando a sua bio diversidade, enquanto Caim estabelecia a posse da Terra, controlando-a. É conhecida a velha querela entre pastores e agricultores, porque os rebanhos não conhecem limites e invadem as searas. O resultado é sabido: Caim matou Abel, irmão contra irmão. Mas deixemos o malvado Caim amargurar-se no fel do ódio alimentado pela posse dos frutos da Terra, e vejamos o que comia o livre Abel.
Abel tinha rebanhos, é certo, mas como estávamos ainda no período pré Noé, não havia autorização para o consumo da carne. Então por que raio Abel tinha rebanhos, perguntam-me vocês. E eu por acaso conheço os segredos insondáveis do Bom Deus? Abel tinha rebanhos porque gostava do pelo macio das ovelhas, pronto! Se não comia a sua carne, talvez bebesse o leite enquanto a mãe Eva lhe tricotava uma túnica de lã para as noites frias da serra. Para transportar o leite ao longo de veredas e penhas, usava o estômago dos animais mortos. O leite em contacto com o ácido sabemos todos que coalha, e temos o queijo. Terá acontecido o mesmo a Abel. Muito surpreendido, verificou que o leite armazenado no estômago tirado a uma cabra velha, coalhou com os ácidos estomacais. Abel gostou e chamou-lhe, queijo na língua que ele falava. Os pastores da Serra da Estrela, mais finos que Abel, em vez do fel do estômago, usam a flor do cardo, e também lhe chamam queijo… ao leite coalhado, mas em português.
Estava Abel olhando as estrelas, pensando como seria bom ter uma namorada com quem compartilhar a ceia, coisa difícil naqueles primeiros tempos, quando decidiu preparar um petisco. Desta vez usou o forno que o pai Adão já tinha, finalmente, construído. Tomando um queijo mal cheiroso de cabra, cortou-o às rodelas colocando-as sobre uma laje de pedra. A seguir desceu a encosta até junto a um ribeiro que corria alegre colina abaixo, e colheu as nozes que frutificavam na árvore que assentava o pé no chão calcário regado pela água do ribeiro. Descascou-as e partiu o miolo aos bocados, espalhando-o sobre as fatias de queijo. Adão, que desde que provara os figos melados de Eva dedicara-se a guardar colmeias para lhe extrair a doçura, forneceu ao filho um corno de carneiro cheio do doce néctar. Abel regou generosamente as fatias de queijo e nozes com o mel que seu pai lhe deu, e depois usou o forno para assar as fatias de queijo, nozes e mel. Ficaram uma delícia! Ainda pensou oferecer ao irmão Caim, mas este estava demasiado preocupado a afugentar os corvos que lhe comiam as sementes.