Num
mundo em risco de colapsar, lembraram-se mulheres e homens de boa vontade de
dirigir à Assembleia da República uma petição sobre o direito a morrer com
dignidade, seja lá isso o que for, como se houvesse uma agenda a cumprir. A
Assembleia é obrigada a discutir a petição mas não a votá-la. Os deputados,
contudo, inchados na importância dos seus cargos, acordaram da sonolência que o
aborrecimento do funcionamento da gerigonça, sem contestação nas ruas e nas
praças, provocou na sociedade portuguesa, que vive e dorme feliz, acreditando
que é o presidente da República quem todos os dias lhe aconchega a roupa e vela junto à cama, qual mãe extremosa.
Querem
agora votar, com liberdade de voto (pasme-se), a mudança de um paradigma da
sociedade criado ao longo de séculos, só para ficarem com a fama da modernidade
da coisa. Os subscritores da petição não se cansam de dizer que é preciso
pressa se queremos apanhar o barco da modernidade, pois já “vários países”
legislaram sobre o assunto. Vai-se a ver e os vários convertem-se nos 4 mais
pequenos países da Europa: Bélgica, Holanda, Luxemburgo e Suíça, curiosamente
os mais ricos, e num da América do Sul, a Colômbia, um dos pobres, e um ou dois
estados norte-americanos. Para vários vai alguma distância. Depois vêm com a
velha questão religiosa e nós pasmados ante a enorme China que se diz ateia e
que ainda não discutiu o assunto.
Sensível
ao tema do direito de cada um poder escolher livremente como quer e quando
morrer, face a um sofrimento que recusa, não sei, no entanto como se deve
legislar e regulamentar tal assunto, para que a livre escolha de cada um não
seja a que Ford preconizava para a cor dos seus carros: o cliente tem toda a
liberdade de escolher a cor do seu carro, desde que escolha o preto! Num país a
braços com a sustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde parece-me uma
obscenidade e futilidade dos senhores deputados em querer discutir este
assunto, antes de resolvido o essencial que permitirá a livre escolha. Só com o
direito a uma vida condigna garantido se pode falar em livre escolha.
Inseridos
numa Europa criadora do Serviço Nacional de Saúde, em que por razões económicas
e financeiras se vai recusando exames que podem salvar vidas, querem agora
convencer-me que caso a eutanásia seja despenalizada e regulamentada, passando
a haver a alternativa de uma morte “digna”, jamais será levantada a questão do
gasto do dinheiro dos contribuintes em cuidados paliativos, quando em países
civilizados e percursores dos cuidados de saúde para todos, para evitar a
morte, se encolhem por causa do déficit!?
Dizem,
socorrendo-se da Constituição, que, e passo a citar: “O direito à vida faz parte do património ético da Humanidade e, como
tal, está consagrado nas leis da República Portuguesa. O direito a morrer em
paz e de acordo com os critérios de dignidade que cada um construiu ao longo da
sua vida, também tem de o ser”. E pronto, que fiquemos descansados que o
direito à vida está consagrado. O problema é que esse direito, como o da
Liberdade, é, de acordo com a Carta das Nações Unidas para os Direitos do
Homem, inalienável, isto é, não depende nem pode depender da vontade de quem
tem esse direito. Se os subscritores da petição tão bem souberam rodear este problema,
ignorando-o, como acreditar que os governos e as sociedades se guiarão sempre
por imperativos éticos universais que se estilhaçam com a maior das
facilidades, ao sabor da semântica?
O debate
que se quer, parte da premissa que deve estar ausente do mesmo, imperativos
religiosos. Já Dostoievski nos ensinou a vacuidade de qualquer imperativo ético
universal: “Se Deus não existe e a alma é mortal, tudo é permitido”. Por outras
palavras, mesmo que Deus não exista, é necessário inventá-lo, caso contrário tudo
será permitido. O século XX encarregou-se de o confirmar.
É por
isso que o debate e a legislação sobre este assunto assumem uma importância e
extensão tal, que os deputados de hoje não têm competência nem legitimidade
para o fazer. Duvido mesmo que metade daqueles senhores tenha alguma vez lido
Kant, para agora virem falar-me de imperativos éticos. E sobretudo não votámos
na opinião deles mas em programas eleitorais de partidos, pelo que, questões
tão radicais nas vidas de todos nós, não podem ficam ao sabor das suas alvares
opiniões.
A
escolha de algo para ti, a escolha por falta de opção e a escolha de outros por
ti, estão ligadas por uma frágil e ténue teia de aranha. Ao menor estremeção a
aranha engole a vítima. A vítima és sempre tu.
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