Preserva-te
da linguagem enganosa, afasta de ti a maledicência. (provérbios
4, 24)
Conheço bem os
retornados porque sou um deles. E, como eles, vivi durante o tempo que estudei
em quartos de pensões pagos pelo IARN. Porque era muito jovem ao tempo da
descolonização, tinha um mundo a conquistar e nada a perder (nunca esperei
heranças), ao contrário dos que, mais velhos, se viram forçados a deixar os
frutos de uma vida de trabalho. Ficou para sempre a mágoa dessa gente espoliada
de tudo. Mas o que doeu mais, o que ainda dói, não foi a perda mas o ganho do
título de colonialistas, racistas, exploradores dos pretos, por quem morriam os
jovens da pátria. Isso dói. E dói mais porque é falso. E no topo dos que nos
acusam e acusaram, os retornados colocaram Mário Soares, só porque este quis
fazer a descolonização a toda a velocidade e, como diz o povo, “cadelas
apressadas parem cães cegos”.
Mas é injusto que se
culpe Mário Soares dos erros da descolonização e que foram pagos, convém
lembrar, não só pelos retornados mas sobretudo pelas populações das ex-colónias
que viveram terríveis guerras civis em consequência da péssima descolonização.
Se tivéssemos exército que garantisse outra opção, então a pressa de Mário
Soares teria sido criminosa, como criminosos foram Salazar e Caetano que não
quiseram negociar quando tínhamos força para o fazer. O exército retirou-se
para os quartéis e para os gabinetes da política. Aquilo que podia ser uma má
opção transformou-se na única saída, e os retornados são por isso injustos com
Mário Soares.
(Sobre tubarões e
bandeiras pisadas, rasgadas ou queimadas, não me pronuncio porque é assunto, ou
da ciência biológica marinha ou da psiquiatria. Quanto a dentes de elefantes
capazes de derrubar um frágil Cesna, lembro aos incautos e amantes de teorias
da conspiração que naquele avião que descolou da Jamba viajavam representantes
do PS, do PSD e do CDS. Desconheço se haveria dentes para todos).
Então o que é que eu
devo a Mário Soares? O 25 de Abril não, que Soares não foi tido nem achado.
Devo-lhe somente a coragem de ter pegado o bicho pelos cornos, transformado um
golpe numa revolução que restaurou a ordem constitucional de uma república
democrática, pluripartidária e com liberdade de expressão e opinião, coisas que
corriam o risco de se perderem em derivas totalitárias. Qualquer homem livre,
de qualquer partido, deve isso a Soares, principalmente os da área da Direita democrática
que não deviam esquecer o papel impulsionador que Soares teve para a formação
em Portugal de uma moderna Democracia Cristã que, com a Social Democracia, é a
cofundadora do projeto europeu e do Estado Social. A ele se deve a nossa
entrada na Europa, que é o sítio onde eu quero e sempre quis viver. Tudo isso,
e não é pouco, lhe devo.
Soares estava longe
de ser um santo. Era delegante, desbocado, malcriado, mimado, com tiques de
sibarita (como eu), péssimo em finanças, mau governante, mas era alegre,
franco, optimista e leal. Discordei muitas vezes dele, e outras tantas me
irritei com a sua truculência, mas no fim estava quase sempre certo e eu não. Se
lhe reconheço os pecados, reconheço-lhe também as virtudes. Se pouca gente
esteve nas ruas a prestar-lhe homenagem nos seus funerais é sinal que o Povo
tem as conquistas que ele ajudou a alcançar como garantidas. Mera ilusão. Por
isso as honras de funerais de estado, para além de merecidas, são necessárias,
a nós que estamos vivos, não aos mortos.
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