quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

O QUE DEVO A MÁRIO SOARES?

Preserva-te da linguagem enganosa, afasta de ti a maledicência. (provérbios 4, 24)
Conheço bem os retornados porque sou um deles. E, como eles, vivi durante o tempo que estudei em quartos de pensões pagos pelo IARN. Porque era muito jovem ao tempo da descolonização, tinha um mundo a conquistar e nada a perder (nunca esperei heranças), ao contrário dos que, mais velhos, se viram forçados a deixar os frutos de uma vida de trabalho. Ficou para sempre a mágoa dessa gente espoliada de tudo. Mas o que doeu mais, o que ainda dói, não foi a perda mas o ganho do título de colonialistas, racistas, exploradores dos pretos, por quem morriam os jovens da pátria. Isso dói. E dói mais porque é falso. E no topo dos que nos acusam e acusaram, os retornados colocaram Mário Soares, só porque este quis fazer a descolonização a toda a velocidade e, como diz o povo, “cadelas apressadas parem cães cegos”.
Mas é injusto que se culpe Mário Soares dos erros da descolonização e que foram pagos, convém lembrar, não só pelos retornados mas sobretudo pelas populações das ex-colónias que viveram terríveis guerras civis em consequência da péssima descolonização. Se tivéssemos exército que garantisse outra opção, então a pressa de Mário Soares teria sido criminosa, como criminosos foram Salazar e Caetano que não quiseram negociar quando tínhamos força para o fazer. O exército retirou-se para os quartéis e para os gabinetes da política. Aquilo que podia ser uma má opção transformou-se na única saída, e os retornados são por isso injustos com Mário Soares.
(Sobre tubarões e bandeiras pisadas, rasgadas ou queimadas, não me pronuncio porque é assunto, ou da ciência biológica marinha ou da psiquiatria. Quanto a dentes de elefantes capazes de derrubar um frágil Cesna, lembro aos incautos e amantes de teorias da conspiração que naquele avião que descolou da Jamba viajavam representantes do PS, do PSD e do CDS. Desconheço se haveria dentes para todos).
Então o que é que eu devo a Mário Soares? O 25 de Abril não, que Soares não foi tido nem achado. Devo-lhe somente a coragem de ter pegado o bicho pelos cornos, transformado um golpe numa revolução que restaurou a ordem constitucional de uma república democrática, pluripartidária e com liberdade de expressão e opinião, coisas que corriam o risco de se perderem em derivas totalitárias. Qualquer homem livre, de qualquer partido, deve isso a Soares, principalmente os da área da Direita democrática que não deviam esquecer o papel impulsionador que Soares teve para a formação em Portugal de uma moderna Democracia Cristã que, com a Social Democracia, é a cofundadora do projeto europeu e do Estado Social. A ele se deve a nossa entrada na Europa, que é o sítio onde eu quero e sempre quis viver. Tudo isso, e não é pouco, lhe devo.
Soares estava longe de ser um santo. Era delegante, desbocado, malcriado, mimado, com tiques de sibarita (como eu), péssimo em finanças, mau governante, mas era alegre, franco, optimista e leal. Discordei muitas vezes dele, e outras tantas me irritei com a sua truculência, mas no fim estava quase sempre certo e eu não. Se lhe reconheço os pecados, reconheço-lhe também as virtudes. Se pouca gente esteve nas ruas a prestar-lhe homenagem nos seus funerais é sinal que o Povo tem as conquistas que ele ajudou a alcançar como garantidas. Mera ilusão. Por isso as honras de funerais de estado, para além de merecidas, são necessárias, a nós que estamos vivos, não aos mortos.

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