terça-feira, 4 de outubro de 2016

O PECADO DA IGREJA É SALVAÇÃO PARA MUITOS ou como se vende uma Bíblia sem bênção


Conheço alguém que professou numa igreja evangélica com a entrega, fervor e maniqueísmo, que por vezes caracteriza aqueles que abandonam a tradição das suas crenças pela novidade de outras. Com o mesmo fervor com que entrou, saiu. Crente que os livros sagrados são a palavra inviolável de Deus, não resistiu quando soube que uma tradução do Novo Testamento para a língua que os esquimós falam, feita pela sua Igreja, substituíra a palavra camelo por foca. A razão era simples: os esquimós não conseguiriam perceber a célebre parábola sobre a dificuldade que os ricos têm em penetrar no reino dos céus pela simples razão que não faziam ideia de como era um camelo, mas percebiam perfeitamente das dificuldades que uma foca teria para passar pelo buraco de uma agulha, apesar de continuarem sem perceber o que era um rico.
Assim parece estar Frederico Lourenço que se propõe a traduzir a Bíblia no seu significado textual, contrário às traduções das igrejas cristãs que nos “escondem” que pecado é afinal erro, e servo não passa de um escravo. Quer nos ver gregos por causa do mau latim que diz que pecado é um erro na forma popular, mas a culpa é sempre a mesma, ao contrário do que dizem que Lourenço diz, que há erro sem culpa, só porque não é pecado. E eu dou graças a Deus por ter sido Aquilino Ribeiro a traduzir Xenofonte e não Frederico Lourenço, para que a “Retirada dos Dez Mil” possa ser lida pelo mais saloio porque está traduzida para o genuíno vernáculo pecaminoso das ruas de Lisboa, passando por cima dos errores da língua grega, permitindo que Xenofonte diga “que ando a armar-vos uma estrangeirinha”, coisa que Frederico Lourenço jamais admitiria (que armou uma estrangeirinha).
Tal como os esquimós não entendem um camelo, nem um rico, também o povo leitor da Bíblia não entende que o escravo da antiguidade clássica não é o são tomense Rei Amador, nem o negro Jim do Tom Sawyer, por isso a Igreja lhe chamou servo e não escravo, para evitar confusões que não esclarecem. E porque elaborar no erro tem as suas consequências, sobem-me da mesma forma os triglicéridos quando incorro no erro de repetir a “mão de vaca” mesmo que recuse chamar-lhe pecado da gula. É que os triglicéridos, como a culpa, não perdoam!
Como o Xenofonte do Aquilino, digo que isto não passa de uma estrangeirinha dos media e das editoras, que o autor é mais sério que isso. É que não há melhor forma para o sucesso da venda de um livro, do que clamar alto e bom som que o mesmo vai revelar algo que a Igreja quis esconder, antes que descubram que afinal sempre esteve desvelado. O pecado (ou o erro?) da Igreja é salvação para muitos!
Eu espero comprar a Bíblia que Frederico Lourenço vai traduzir. O meu leitor faça o mesmo. Para benefício das letras e da nossa erudição. Mas não caia na esparrela dos jornais, de pensar que vai descobrir que os reis magos não eram três, que o burro e a vaca somos nós todos, e na manjedoura está o nosso alimento. Isso vai ter de descobrir por si.

(só para os mais novos: estrangeirinha é uma expressão típica de Lisboa, desconhecida dos clássicos gregos que não conheciam as coristas espanholas dos nossos cabarés, e que significa artimanha para lograr, tranquibérnia, velhacaria).

Sem comentários:

Enviar um comentário