Conheço alguém que
professou numa igreja evangélica com a entrega, fervor e maniqueísmo, que por
vezes caracteriza aqueles que abandonam a tradição das suas crenças pela
novidade de outras. Com o mesmo fervor com que entrou, saiu. Crente que os
livros sagrados são a palavra inviolável de Deus, não resistiu quando soube que
uma tradução do Novo Testamento para a língua que os esquimós falam, feita pela
sua Igreja, substituíra a palavra camelo por foca. A razão era simples: os
esquimós não conseguiriam perceber a célebre parábola sobre a dificuldade que
os ricos têm em penetrar no reino dos céus pela simples razão que não faziam
ideia de como era um camelo, mas percebiam perfeitamente das dificuldades que
uma foca teria para passar pelo buraco de uma agulha, apesar de continuarem sem
perceber o que era um rico.
Assim parece estar
Frederico Lourenço que se propõe a traduzir a Bíblia no seu significado
textual, contrário às traduções das igrejas cristãs que nos “escondem” que
pecado é afinal erro, e servo não passa de um escravo. Quer nos ver gregos por
causa do mau latim que diz que pecado é um erro na forma popular, mas a culpa é
sempre a mesma, ao contrário do que dizem que Lourenço diz, que há erro sem
culpa, só porque não é pecado. E eu dou graças a Deus por ter sido Aquilino
Ribeiro a traduzir Xenofonte e não Frederico Lourenço, para que a “Retirada dos
Dez Mil” possa ser lida pelo mais saloio porque está traduzida para o genuíno
vernáculo pecaminoso das ruas de Lisboa, passando por cima dos errores da
língua grega, permitindo que Xenofonte diga “que ando a armar-vos uma
estrangeirinha”, coisa que Frederico Lourenço jamais admitiria (que armou uma
estrangeirinha).
Tal como os esquimós não
entendem um camelo, nem um rico, também o povo leitor da Bíblia não entende que
o escravo da antiguidade clássica não é o são tomense Rei Amador, nem o negro
Jim do Tom Sawyer, por isso a Igreja lhe chamou servo e não escravo, para
evitar confusões que não esclarecem. E porque elaborar no erro tem as suas
consequências, sobem-me da mesma forma os triglicéridos quando incorro no erro
de repetir a “mão de vaca” mesmo que recuse chamar-lhe pecado da gula. É que os
triglicéridos, como a culpa, não perdoam!
Como o Xenofonte do
Aquilino, digo que isto não passa de uma estrangeirinha dos media e das
editoras, que o autor é mais sério que isso. É que não há melhor forma para o
sucesso da venda de um livro, do que clamar alto e bom som que o mesmo vai
revelar algo que a Igreja quis esconder, antes que descubram que afinal sempre
esteve desvelado. O pecado (ou o erro?) da Igreja é salvação para muitos!
Eu espero comprar a
Bíblia que Frederico Lourenço vai traduzir. O meu leitor faça o mesmo. Para
benefício das letras e da nossa erudição. Mas não caia na esparrela dos
jornais, de pensar que vai descobrir que os reis magos não eram três, que o
burro e a vaca somos nós todos, e na manjedoura está o nosso alimento. Isso vai
ter de descobrir por si.
(só
para os mais novos: estrangeirinha é uma expressão típica de Lisboa,
desconhecida dos clássicos gregos que não conheciam as coristas espanholas dos
nossos cabarés, e que significa artimanha para lograr, tranquibérnia,
velhacaria).
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