Quando era miúdo vi um
filme com o António Calvário e a Madalena Iglésias que se chamava “Sarilho de
Fraldas”. Já o Charlot tinha filmado estonteantes perseguições policiais, quando
neste filme da década de 60, o polícia encarregado da perseguição ao fugitivo,
que se escondera algures nas serras de Portugal, diz para o colega, na calma de
um gabinete lisboeta e com um ar de extrema eficiência e determinação: - Ainda
esta noite estarei no Carregado! Deixando o colega e os espectadores, atordoados
pela velocidade vertiginosa e perigosa que o policial precisaria para chegar de
Lisboa ao Carregado a tempo da ceia, enquanto o perigoso fugitivo (António Calvário)
já se embrenhava por entre o Douro e Minho.
O policial
cinematográfico deslocar-se-ia de carro, mas em 1856 poderia ter ido de
comboio, pois foi o ano em que se inaugurou a primeira viagem de comboio em
Portugal. Bastante atrasada em relação ao resto da Europa, atraso a que o
Marquês de Pombal, já morto e enterrado há 74 anos, foi, de certo modo,
responsável (um dia explico porquê). O Carregado é assim a fronteira simbólica
da interioridade portuguesa (e da sua mediocridade).
A construção da via
férrea entre Lisboa e o Carregado durou três anos, a uma média de 12 km por
ano, e terminou 11 anos depois de se ter decidido contruir a via férrea. Por
que razão se escolheu Lisboa e o Carregado é algo para mim incompreensível.
Antes do comboio, as mercadorias saltavam montes e vales, atascando-se na lama
dos caminhos, para chegar ao Carregado onde depois embarcavam e desciam suave e
seguramente o Tejo até Lisboa. Depois da inauguração do comboio as mercadorias
continuaram a saltar montes e valas e a atascarem-se na lama dos caminhos para
chegar ao Carregado para depois descerem até Lisboa aos solavancos, poluindo a
zona ribeirinha com o fumo do carvão que substituía o vento nas velas dos
barcos do Tejo. A linha férrea deveria ter começado sempre pelo Norte (Porto, estou
contigo, mas é só desta vez). Na moderna Inglaterra foi por Manchester e
Liverpool que começou e não por Londres.
No dia 26 de outubro de
1856, faz agora 160 anos, a viagem de 36.5 km entre Lisboa e o Carregado durou
40 minutos a uma estonteante velocidade de 54 km/hora. A volta foi mais
complicada, tendo que se fazer em duas viagens porque as locomotivas envolvidas
no processo recusaram-se a arrastar tanta gente depois de um lauto banquete que
correu muito bem, como nestas coisas sucede sempre (correrem muito bem os
banquetes). Pela noitinha, já burgueses e realeza descansavam em suas casas de
toda a excitação provocada pela incursão “ao interior” do país. A história não
relata se houve ou não ataques de índios ferozes e ululantes, ou de negros
liderados pelo régulo Mawewe, tio do Gungunhana, mas creio que não, que a
população da beira rio é pacífica por natureza.
Na Rússia, um país
bastante atrasado em relação à Alemanha e Inglaterra, há muito que se viajava de
comboio, e cinco anos antes da viagem ao Carregado, já se podia percorrer por caminho de ferro os 713 km que separam Moscovo de San Petersburgo, distância maior que a que separa
a ria Formosa do rio Minho.
Não me apetece nada
comemorar uma efeméride que denuncia a estupidez de tantas decisões tomadas em
gabinetes onde despontam carreiristas que não vêm além do seu ventre, desde o
tempo do Fontes até aos dias de hoje, com honrosa excepção para o mesmo Fontes.
Se duvida, leia os últimos episódios sobre este país de licenciados (e
a-mestrados), a substituir os bacharéis do Eça. Um deles tinha motorista para o
levar diariamente, não ao Carregado, mas a S. Martinho do Porto, onde o comboio
para mesmo na praia.
Não comemoro a efeméride
porque duvido que consiga chegar a tempo ao Carregado!
Lindo!
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