Vai por
aí um charivari por causa da atribuição do prémio Nobel da literatura a Bob
Dylan, um escritor de canções populares. Uns porque não reconhecem qualquer valor
literário ao cantor, outros porque, gostando muito do cantor, não acham que a sua
categoria se encaixe em literatura, como se a Academia Sueca se tenha
preocupado com a Literatura quando atribuiu o prémio a um historiador, Theodor
Mommsen, já em 1902, só porque o homem escreveu a monumental História de Roma,
ou a Winston Churchill por causa das suas memórias da 2ª Guerra Mundial.
Julgo
que qualquer das facções, os que estão a favor e os que estão contra, estão
pelo menos de acordo quando ambos erram na sua apreciação: os que estão contra
porque Dylan é um “marginal”, e os que estão a favor porque precisamente acham
que Dylan é um “marginal” e, por isso, uma pedrada no charco.
Dos
grandes escritores, desde a antiguidade, é conhecida a sua propensão para a
marginalidade. Bob Dylan ao pé de alguns dos maiores é um menino
bem-comportado. Verlaine, Baudelaire e Rimbaud são grandes nomes da literatura
francesa e não vos conto aqui os pormenores das suas vidas porque este é um
blog decente e tenho propensão a corar. Dylan fumou umas coisas? O Camilo
Pessanha, um dos nossos maiores poetas que viveu quando muitos de nós não éramos nascidos, morreu de uma overdose de ópio. Allan Poe, Baudelaire, fumavam e
tomavam coisas que não lembram ao diabo. Nenhum dos que agora se insurgem
contra a atribuição do prémio a Dylan se atreveria a convidar para almoçar (já
nem digo jantar) o nosso poeta Bocage, o maior da língua portuguesa depois de Camões,
estando presentes a esposa e as filhas. Já a presença de Dylan ao jantar
despertaria a curiosidade e a intromissão das vizinhas a pedir autógrafos e
nenhuma mancha cairia sobre a honra da casa. Pelo que faz muito bem a Academia
em não se ralar com a maior ou menor marginalidade dos premiados. O prémio é
pelo valor poético e não pelos cabelos compridos e o olhar de bêbado.
Vamos lá
a ver. A cultura a ser premiada deve ser a forma erudita de produzir arte. Ora
não é por Dylan cantar os seus poemas de uma forma popular que estes perdem o
seu valor erudito. Amália cantou na forma popular do fado a erudição de Camões.
A música de Dylan enquadra-se na arte popular e não erudita, mas os seus
poemas, não tenho dúvidas, são fruto de uma erudição que demonstram
conhecimento das estéticas artísticas da cultura dita não popular.
A poesia
do rei David expressa-se nos belíssimos salmos, expressão literária do mais
fino recorte que se pode ler na Bíblia. Eram todos cantados pelo próprio David
que, ao que consta, não frequentou o conservatório (e já agora, um grande marginal que dançava nu pelas ruas). Os poemas de Dylan seguem
assim o longo caminho trilhado desde a antiguidade, de cantar letras eruditas
nas formas musicais populares. Foi assim com toda a trovadoresca provençal que
nos deu as nossas cantigas de amigo e de amor e as cantigas de Santa Maria de
Afonso X. Formas literárias eruditas cantadas em estrofes que vinham da
tradição popular: a génese da nossa literatura são as cantigas. O primeiro
registo literário da nossa língua é a cantiga de Paio Soares de Taveirós,
chamada a “cantiga da Ribeirinha”, dedicada a uma cortesã (forma simpática de
chamar prostituta), concubina do rei Sancho I.
O que interessa
mesmo é saber se as “letras” do Dylan são ou não literatura, superior à História
de Roma ou às biografias do Churchill. O melhor é lê-las e, para os mais
sensíveis, esqueçam lá a gaita e a voz rouca e lembrem-se de que não é a
primeira vez que um músico ganha o Nobel da Literatura (já aconteceu em 1913):
SAD
EYED LADY OF THE LOWLANDS
With
your mercury mouth in the missionary times,
And
your eyes like smoke and your prayers like rhymes,
And
your silver cross, and your voice like chimes,
Oh,
do they think could bury you?
With
your pockets well protected at last,
And
your streetcar visions which you place on the grass,
And
your flesh like silk, and your face like glass,
Who
could they get to carry you?
Sad-eyed
lady of the lowlands,
Where
the sad-eyed prophet says that no man comes,
My
warehouse eyes, my Arabian drums,
Should
I put them by your gate,
Or,
sad-eyed lady, should I wait?
With
your sheets like metal and your belt like lace,
And
your deck of cards missing the jack and the ace,
And
your basement clothes and your hollow face,
Who
among them can think he could outguess you?
With
your silhouette when the sunlight dims
Into
your eyes where the moonlight swims,
And
your match-book songs and your gypsy hymns,
Who
among them would try to impress you?
Sad-eyed
lady of the lowlands,
Where
the sad-eyed prophet says that no man comes,
My
warehouse eyes, my Arabian drums,
Should
I put them by your gate,
Or,
sad-eyed lady, should I wait?
The
kings of Tyrus with their convict list
Are
waiting in line for their geranium kiss,
And
you wouldn't know it would happen like this,
But
who among them really wants just to kiss you?
With
your childhood flames on your midnight rug,
And
your Spanish manners and your mother's drugs,
And
your cowboy mouth and your curfew plugs,
Who
among them do you think could resist you?
Sad-eyed
lady of the lowlands,
Where
the sad-eyed prophet says that no man comes,
My
warehouse eyes, my Arabian drums,
Should
I leave them by your gate,
Or,
sad-eyed lady, should I wait?
Oh,
the farmers and the businessmen, they all did decide
To
show you the dead angels that they used to hide.
But
why did they pick you to sympathize with their side?
Oh,
how could they ever mistake you?
They
wished you'd accepted the blame for the farm,
But
with the sea at your feet and the phony false alarm,
And
with the child of a hoodlum wrapped up in your arms,
How
could they ever, ever persuade you?
Sad-eyed
lady of the lowlands,
Where
the sad-eyed prophet says that no man comes,
My
warehouse eyes, my Arabian drums,
Should
I leave them by your gate,
Or,
sad-eyed lady, should I wait?
With
your sheet-metal memory of Cannery Row,
And
your magazine-husband who one day just had to go,
And
your gentleness now, which you just can't help but show,
Who
among them do you think would employ you?
Now
you stand with your thief, you're on his parole
With
your holy medallion which your fingertips fold,
And
your saintlike face and your ghostlike soul,
Oh,
who among them do you think could destroy you?
Sad-eyed
lady of the lowlands,
Where
the sad-eyed prophet says that no man comes,
My
warehouse eyes, my Arabian drums,
Should
I leave them by your gate,
Or,
sad-eyed lady, should I wait?
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