A Igreja católica tem a
função ingrata de fazer recair sobre si a culpa da maior parte da estupidez dos
homens, como se fosse ela a causadora dessa estupidez e não dos homens que
carregam tal qualidade.
Num programa de rádio
(antena dois) ouvi um senhor, que não fixei o nome, falar sobre Gabriele
Fallopio, e como este famoso anatomista do século XVII descreveu o aparelho
reprodutor masculino e feminino, ficando para sempre conhecido pela sua
descrição das trompas de Falópio. Dizia o senhor, perante a admiração bacoca do
locutor, que o senhor Fallopio muito sofreu para fazer os estudos de anatomia
devido à proibição que a Igreja impunha sobre a dissecação dos cadáveres.
Acrescentou depois que, não obstante, o Sr. Fallopio descobriu o clítoris e o
orgasmo feminino, enquanto o locutor ejaculava ahs de admiração e espanto.
Não digo que algum clero
mais retrógrado não se opusesse à dissecação dos cadáveres. Ainda hoje tal
prática repugna os mais sensíveis, e na Grécia antiga, sempre tão liberal, tal
prática era proibida, tal como na Roma pagã, enquanto no Egipto se fazia à
tripa forra. O estudo da anatomia em corpos é muito mais antigo que o Sr.
Fallopio e as suas trompas. Se a Igreja proibia não sei, mas sei que Mondino de
Luzzi realizou dissecações públicas no início do século XIV, trezentos anos
antes das descobertas de Fallopio, em Bolonha, mesmo nas barbas do Papa. E sei
que Frederico II, imperador da Alemanha e das Sicílias, em princípios do mesmo
século XIV, obrigou a que os futuros médicos estudassem anatomia em cadáveres
humanos e que tal prática já era feita no século anterior, também em Itália, à
sombra da Igreja católica. Que Fallopio tenha tido problemas com alguns
sectores da Igreja, do clero e da opinião pública sobre o uso de cadáveres,
acredito que sim, mas não é rigoroso, e estamos no campo da ciência em que o
rigor é essencial, que afirmem que havia uma proibição da Igreja.
E depois o gozo feminino
que o senhor diz ser descoberta do Fallopio. E eu sou obrigado a chamar em
socorro a minha querida monja do século XII, Hildegard de Bingen, que, entre
outras coisas, descreveu tão bem e tão poeticamente, esse orgasmo feminino que
ela tão bem conhecia, vá-se lá saber porquê. E não era em segredo que o
murmurava, mas em livros abençoados pelo alto clero da Igreja católica que se
curvava à sabedoria feminina de Hildegard.
E o clítoris, senhores?
Uma descoberta da ciência renascentista europeia?! Na altura em que iniciávamos
a colonização do mundo e que nos abismávamos com o conhecimento que tantos
“médicos” tradicionais africanos tinham do botãozinho prazeroso que até o
excisavam, desde a mais antiga antiguidade, passe o pleonasmo. Aproveito para
afirmar que não, não se trata de uma prática islâmica. Como é que estes “selvagens”
cortavam o dito coiso se o Sr. Fallopio ainda o não tinha descoberto?
Tenho uma grande
admiração pelo conhecimento e cultura europeia, mas não exageremos. E nem a
Renascença foi um descobrimento, mas antes o galopar de um cavalo que até aí,
durante toda a Idade Média, trotara com garbo ensaiando por vezes esse galopar
renascentista muito antes do século XV.
Lembrem-se que nem a
pólvora descobrimos!
E agora uma fofoquice,
daquelas picantes. Já ouviram falar na nossa princesa Catarina de Bragança que
deu o chá a beber aos ingleses?! Pois a senhora, para nossa salvação, casou com
o rei Carlos II de Inglaterra. O moço, para além da rainha portuguesa, tinha
muitas amantes e um medo de morte da sífilis, mal que foi “descoberto” pelos
navegadores quando chegaram à América. Vai daí o conde de Condom (perceberam a
piada? É o nome que os ingleses dão às camisinhas!), entregou ao rei uma “luva”
oleada e feita com intestino de carneiro, coisa aprendida com o italiano
Fallopio. E por que vos falo destas histórias de alcova? Porque o tal senhor da
Antena dois, causando ainda maior espanto ao locutor, afirmou que o sr.
Fallopio também tinha inventado a camisinha. Ora o que o Fallopio, coitado,
fez, foi prescrever a camisinha, que já os egípcios usavam para a contracepção,
para defesa contra as doenças venéreas, principalmente essa “filoxera” que
vinha da América e que dava pelo nome de sífilis.
É que o Fallopio não
descobriu nem inventou coisa alguma. Limitou-se a descrever o funcionamento
daquilo que já se sabia desde o tempo em que o Moisés rogou as sete pragas
contra o Egipto. Em abono do Fallopio, devo dizer que ele descreveu muito bem
as tais trompas e descobriu que não senhor, os cavalheiros não penetravam o
útero. Passaram as damas a dormir muito mais descansadas desde então, menos o
tal conde de Condom que não achou piada nenhuma por ver associado o nome da
família a tal peça intestinal.
Não se sabe, nem o tal senhor da Antena dois disse, sobre o que pensava
o Papa a propósito da “invenção” para cavalheiros do Sr. Fallopio.
Belo texto! A vida é reinventada dia a dia, e os seus textos conseguem ser também uma surpresa constante, ainda que mantendo sempre o seu quê de acutilância, sagacidade e boa disposição. E já agora, parabéns pela Alice!
ResponderEliminarMuito obrigado, eu, pela paciência de me ler e comentar.
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