O jantar de Domingo
começou com a votação do impeachment
a Dilma Rousseff. Quando larguei a televisão já era madrugada de segunda-feira.
Assisti porque o que se passava diante dos olhos era um exercício ao mesmo
tempo fascinante e grotesco. A realidade que ali passava diante dos olhos não
era o que julgava ser o funcionamento da casa da democracia. Diante de todos
pudemos descobrir, em directo, um Brasil saído das profundezas que pensávamos
existir somente nas telenovelas a que nos habituámos a ver: Gabriela, O Bem
Amado, Roque Santeiro… Foi um desfile de Odorico Bastos, Sinhozinho Malta,
Florindo Abelha, viúva Porcina...
Para que conste, não
nutro qualquer simpatia por Dilma Rousseff ou por Lula da Silva. A arrogância, o
desprezo com que nos trataram, demonstrando um provincianismo bacoco, a
ignorância e a falta de sentido de estado, desagradam-me. Mas como muito bem
lembraram alguns deputados a favor do impeachment,
apesar de tudo, o que estava em causa era o julgamento político de um suposto
crime da presidente e não a sua política governamental, que para isso não
tinham competência. Não me ficaram dúvidas, no entanto, que o voto foi muito
mais contra as políticas governamentais de Dilma do que contra o suposto crime
praticado ou não. Como foi declarado, de forma grandiloquente e exacerbada pelos
deputados, o voto foi contra o comunismo, o vermelho, o ensino do sexo nas
escolas, as uniões gay, o suposto ataque à família, o ateísmo, etc..
Quase todos os
deputados que votaram a favor do impeachment
(e foram mais de 2/3), cientes do efeito televisivo que a sua presença teria na
sua terra e famílias, com gestos de fazer inveja a um shakespereano Marco António
(venho para sepultar César, não para
elogiá-lo…), falaram em nome de Deus, em nome dos pais, das mães, das
esposas, dos filhos (houve mesmo um que voltou ao microfone, muito tempo depois
de votar, porque se tinha esquecido de nomear um dos filhos), das tias (a
sério), dos avós, da Nª Srª da Nazaré, dos filhos por nascer, das suas cidades,
do seu estado, da corporação da sua profissão, dos seus eleitores, do povo
Evangélico, pelo REINO DE ISRAEL e pela cidade santa de JERUSALÉM!!! (nenhum se
atreveu, no entanto, a citar as amantes ou os amantes, para bem dos costumes).
“BEM-AVENTURADA É A
NAÇÃO CUJO DEUS É O SENHOR! EU VOTO SIM”. E citando o Salmo 33, gritavam o seu
voto, enquanto eu me afundava no sofá receando a ira divina.
Alguns, imitando João
Soares, chegaram mesmo a afirmar qual seria o sentido de voto de alguns
ausentes e falecidos. Uma deputada começou a defender Dilma e acabou votando
Sim. O presidente da mesa sorriu dando-se conta do erro? A ser engano era-lhe
favorável, siga a votação!
De outros deputados
chegámos mesmo a saber o nome de toda a sua família e árvore genealógica que
não chegava ao Manuel e à Maria de uma aldeia remota do Minho, ao cacique
Tupiniquim ou à rainha Ginga, porque o presidente da mesa atalhava a tempo.
Um deputado pelo Não, com
ironia, disse pensar que vinha para uma reunião política e afinal via-se no
meio de pais, de mães, de filhos. Dois deputados, também pelo Não, um deles
padre, fizeram questão de lembrar a tão religiosa e extremosa assembleia as
violações que tanta invocação e atitude faziam ao 2º, ao 4º e ao 7º mandamentos
da Lei de Deus!
Houve de tudo, desde cânticos
no momento do voto, a disparos de foguetes de confetis. Um Tiririca comedido,
assustado com a concorrência à profissão de palhaço, votou Sim. Um grande
aplauso. Outros, mais líricos, falaram em verso. A oratória, a retórica, as
artes declamatórias, a gritaria e a festa carnavalesca tiveram rédea solta, ou
não estivéssemos no Brasil. Todos eram contra a corrupção apesar de na mesa se
sentarem acusados da mesma córrupêção (como tanto se ouviu). Os que votaram
Não, sem medo e cara a cara, acusaram o presidente da mesa de ladrão, corrupto,
gangster, canalha, criminoso,
covarde… “A sua hora chegará, Eduardo
Cunha.” Ouvia-se gritar.
Os que votaram sim ao impeachment, sabendo da força da
televisão, distribuíram-se na sala para que fossem vistos e ouvidos. Primeiro
por detrás da mesa da presidência com cartazes e faixas, depois em redor do
microfone onde se fazia a votação, tapando com os cartazes os que diziam Não, para
que em casa os não víssemos. Ali, junto ao microfone, por vezes, chegaram a
intimidar, ou pretenderam intimidar quem votava Não. Foi feio de ver o que era
suposto ser uma sessão de debate político transformado num espectáculo triste.
Apesar de tudo, convenhamos, o nível já tinha baixado com Lula e Dilma.
A democracia é o pior
regime com excepção de todos os outros, dizia Churchill que sabia bem dos
perigos que este sistema comporta e da necessidade de criar mecanismos de
controlo das suas deficiências, e eu dei por mim a pensar no despotismo
esclarecido de Frederico II da Prússia, amigo e companheiro de Voltaire…
A minha opinião a favor
do presidencialismo foi ferida de morte nesta noite em que assisti a este espectáculo
grotesco de uma certa democracia, num país que gostamos de pensar ser a parte
boa de Portugal, como já ouvi alguém dizer.
Num sítio onde todos se
tratam por Vossa Excelência, não sobrou excelência nenhuma. Como tanto se ouviu
nesta noite, eu repito: “Que Deus tenha misericórdia…”
Assisti apenas a alguns minutos e, de facto, grotesco é a palavra que melhor descreve aquele inacreditável espectáculo! Obrigado pelo texto, completa o pouco que, incredulamente, vi.
ResponderEliminarFoi-me impossível deixar de ver. Estava fascinado, pela negativa.
EliminarSó vi uma amostra da arena e pelo que vi e ouvi, também só me resta dizer "Que Deus tenha misericórdia...".
ResponderEliminarEu fiquei de tal maneira fascinado, pela negativa, que não pude deixar de ver até ao momento decisivo. Foi mesmo muito mau. Não pelo resultado da votação, mas pela forma como tudo aquilo correu, a hipocrisia de tanto corrupto clamando contra a corrupção e invocando o nome de Deus em vão. Diria que foi mesmo uma blasfémia.
Eliminar