sexta-feira, 31 de outubro de 2014

IMPRESSÕES DE UMA VIAGEM A ISTAMBUL

 

A paragem do metro de superfície de Çemberlitas encosta-se à grandiosa coluna de Constantino sem pedir licença. O símbolo da nova Roma do Oriente merecia melhor sorte.

Aquela bela e magnífica coluna construída em 330 DC foi durante mil e cem anos o símbolo da capital do legado romano que em 1453 se transformaria na capital do império Otomano. Quando em 1923 o fundador da República Turca a destronaria a favor de Ankara, Constantinopla, então Istambul, perdia o estatuto de capital. Tinha aquela coluna cerca de mil e seiscentos anos. Uma capital com esta história ininterrupta de poder e glória merecia morrer de outra forma: arrasada por um ataque de hordas sanguinárias vindas do interior da Ásia ou de Marte, ou por qualquer cataclismo natural suficientemente grandioso, mas nunca por decreto administrativo. Ataturk, para salvar a Turquia, abriu uma ferida no coração de Istambul difícil de sarar e de compreender. Os milhares de turistas e cidadãos que diariamente descem naquela paragem correm em direcção aos banhos mesmo ao lado, aos kebabes que a rodeiam, à mesquita quase em frente ou à movimentada feira que inunda as ruas em direcção ao Grande Bazaar. Quem ali chega de carro procura um espaço disponível no caótico parque de estacionamento junto à sua praça. Além das pombas mais ninguém olha para o alto da velha coluna com dezassete séculos e que um dia ostentou a estátua do deus Sol Invicto na representação do imperador. A coluna que resistiu a temporais que destruíram a estátua, ao violento incêndio que a enegreceu e ao roubo dos cruzados que num excesso de hooliganismo acharam mais fácil pilhar a cidade irmã que dar batalha ao inimigo, é capaz de não resistir à indiferença dos cidadãos de Istambul e dos turistas entontecidos pela azáfama comercial no que foi o coração da cidade.

Se a Coluna de Constantino foi o coração de Bizâncio, Santa Sofia foi a alma. Uma e outra perderam a sua função mas Santa Sofia mostra ao mundo, entre as feridas abertas, o espanto dos seus mosaicos que o azul da mesquita irmã não consegue ofuscar. O coração e alma de Istambul estão hoje no Corno de Ouro e no Bósforo. É assim Istambul. Uma cidade viva que recusa o estatuto de museu, que não é velha nem nova e onde no meio de bairros pobres e decrépitos se podem encontrar velhas igrejas convertidas em mesquitas, Pamakaristos e São Salvador em Chora, ostentando magníficos exemplares dos mosaicos bizantinos que escaparam ao fervor religioso e à fúria rapace de exploradores que fizeram a glória dos louvres espalhados pela Europa. Os mosaicos têm um brilho ali, no meio dos prédios arruinados e de miúdos que brincam na rua, que nunca teriam nas paredes de um museu.

Istambul, que outrora foi mais cosmopolita do que hoje é, como refere Orhan Pamuk citando Théophile Gautier, onde entre tantas línguas que os seus habitantes falavam se incluía o ladino que os judeus ibéricos para ali levaram, necessita de uma representação simbólica que lhe foi roubada ou que perdeu. Já não é possível aos turistas basbaques olharem nos olhos[i] o sultão que todas as sextas-feiras se dirigia à mesquita como crente devoto, ou suspirar em volta dos muros do harém (edifício opressivo que apesar da beleza deixa uma marca desagradável no espírito de quem o visita), imaginando frivolidades sobre as mulheres que o habitavam. Essa falta transforma Istambul numa simples feira, rica e bela. Apesar do património riquíssimo, falta-lhe a fruição do gosto cultural e artístico de Berlim ou Paris, ou a sofisticação moderna e simbólica do poder económico e da cultura pop de Londres. Roma, destronada por Constantino, mantém contudo um símbolo que Istambul perdeu. Esvaziada do seu antigo poder resta-lhe como símbolo aquele corredor de águas profundas e escuras que liga o centro da Europa ao Mediterrâneo e que enriquece a cidade.

Uma visita de seis dias é insuficiente para “pintar” retratos à moda dos escritores e jornalistas que visitaram a cidade no período romântico mesmo que o seu engenho e arte me acompanhassem, mas não posso deixar de falar da vida simples, pacata, de aldeia, dos bairros arruinados de Fener e Balat, das velhas casas de madeira, da vista que se descobre, entre prédios de uma rua estreita e íngreme, sobre o Corno de Ouro e do bairro de Pêra no outro lado e da calma melancólica dos seus cemitérios onde os gatos se fazem estátuas vivas imitando os anjinhos de pedra que se vêm nos nossos. Istambul é tão antiga que já ninguém lhe pergunta a idade e por isso se permite tomar chá encostada às pedras do velho aqueduto romano, à sombra dos seus arcos, como se de um vulgar muro de quinta se tratasse. Só aqui se permitiria que o túmulo do conquistador, um homem sábio e grande que virou do avesso a história do mundo e granjeou o respeito e o temor da Europa e cujo feito é usado como sinal do fim da Idade Média, se situe num belo mas singelo mausoléu de jardim à porta do cemitério da mesquita de Fatih, por onde os distraídos passam sem se aperceberem da importância do local.

Poucos em Paris saberão quem foi Haussmann e Manuel da Maia é um completo desconhecido dos portugueses, mas em Istambul o apressado homem de negócios que desce em direcção a Eminonu não deixa de dispor de um pouco do seu tempo para rezar no passeio da rua, chegado à grade do cemitério onde se encosta o túmulo simples e despretensioso de Mimar Siman, o arquitecto da grandiosa mesquita de Solimão e do hammam de Çemberlitas frente à coluna de Constantino. Foi a mais comovente representação de cidade que já vi!

Gostaria de descrever a beleza dos arcos, das portas, das cimalhas e dos capitéis que ornamentam as mesquitas grandiosas, falar da calma que se sente nos seus pátios e da vista dos seus jardins miradouros debruçados das colinas do distrito de Fatih. Da beleza das suas pedras que tem a mesma cor e textura das pedras ensaboadas dos hammams. Não saberia o que dizer da mesquita de Ortakoy, jóia barroca de cor rosa, e do sobressalto de a ver tão frágil à beirinha do Bósforo, um corredor de mar sem praias que a deixa à mercê da deriva de um qualquer cargueiro que perca o rumo do mar Negro em manhã de nevoeiro.

Falaria do encanto do grande bazaar com a sua profusão de jóias e tapetes, da gincana acrobática dos carregadores de bandejas de chá circulando por entre a multidão, e da explosão dos sentidos da vista e do olfacto provocado pelas bancas do bazaar das especiarias.

Recomendaria a paciência necessária à travessia dos túneis de Eminonu, fugindo dos vendedores de relógios, telemóveis, brinquedos, cuecas e peúgas para alcançar a ponte da Gálata cujos pescadores parecem alheados das histórias de sultões e concubinas que ali, à sua frente, no jardim que se vê ao fundo e acima, na ponta que marca o estuário onde pescam, um dia aconteceram.

Depois descreveria a Gálata e a Istiklal que começando no convento dos Mevlevis acaba de maneira espantosa, assombrosa e até assustadora na Praça Taksim, para citar Orhan Pamuk que acrescenta, citando por sua vez Nerval: Lojas brilhantes de comerciantes de moda, de joalheiros, de confeiteiros e boutiques de roupas finas, mansões inglesas e francesas, salas de leitura e cafés. E, acrescento eu, de gelados, bares e restaurantes, casas de câmbio, livrarias, lojas de perfumes e de instrumentos musicais, Kebabs, peixarias, cordões policiais, manifestações … gás pimenta!

Se fosse capaz descreveria os matizes das cores dos bosques das margens do Bósforo, das suas pequenas aldeias que mergulham nas águas escuras e que oferecem uma calma que contrasta com o bulício da grande metrópole que se vê em fundo e teria de afirmar que as vistas do Bósforo sobre a cidade mostram-nos uma silhueta teatral e o desenho das colinas faz-nos lembrar, inevitavelmente, Lisboa. E se a comparação com as restantes cidades que conheço me permitem dizer sem hesitação que Lisboa vence todas, aqui a mão hesitaria e tremeria com medo de transferir para a pantalha do computador a heresia antipatriótica de que Istambul é a mais bela!

E num remate poético teria de afirmar que a cerimónia do Sema e as danças dos dervixes no convento dos Mevlevis, património cultural imaterial da humanidade, preenchem o aparente vazio da representação simbólica da cidade: l’Amor que move il Sole e l’altre stelle[ii]. Que do meio da ponte da Gálata fica-nos na retina o Sol poente brincando às escondidas com os minaretes da mesquita de Solimão e que a beleza do timbre da voz do muezim da mesquita Mihrimah de Uskudar, na Ásia, nos tocou o espírito quando, no seu melodioso Adhan (ezan), chamava à oração do meio-dia: “Deus é grande… Não há outra divindade senão Deus”!



[i] O poeta francês Nerval jurava que o sultão o viu e que os seus olhares se cruzaram. In “Istambul, memórias de uma cidade” de Orhan Pamuk
[ii] Último verso da Divina Comédia de Dante: O amor que move o Sol e as estrelas.



2 comentários:

  1. Obrigado por este magnífico texto. Uma referência a ler obrigatoriamente antes de visitar Istambul o que, no meu caso, penso vir a acontecer em 2016.

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    1. Muito obrigado Fanático_Um. Não hesite, vá e não deixe que uma qualquer e eventual timidez o impeça de um revigorante banho num dos muitos e belos hammans da cidade, sempre no final da viagem.

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