A paragem do metro de superfície de
Çemberlitas encosta-se à grandiosa coluna de Constantino sem pedir licença. O
símbolo da nova Roma do Oriente merecia melhor sorte.
Aquela bela e magnífica coluna
construída em 330 DC foi durante mil e cem anos o símbolo da capital do legado
romano que em 1453 se transformaria na capital do império Otomano. Quando em
1923 o fundador da República Turca a destronaria a favor de Ankara,
Constantinopla, então Istambul, perdia o estatuto de capital. Tinha aquela
coluna cerca de mil e seiscentos anos. Uma capital com esta história
ininterrupta de poder e glória merecia morrer de outra forma: arrasada por um
ataque de hordas sanguinárias vindas do interior da Ásia ou de Marte, ou por
qualquer cataclismo natural suficientemente grandioso, mas nunca por decreto
administrativo. Ataturk, para salvar a Turquia, abriu uma ferida no coração de
Istambul difícil de sarar e de compreender. Os milhares de turistas e cidadãos
que diariamente descem naquela paragem correm em direcção aos banhos mesmo ao
lado, aos kebabes que a rodeiam, à mesquita quase em frente ou à movimentada
feira que inunda as ruas em direcção ao Grande Bazaar. Quem ali chega de carro
procura um espaço disponível no caótico parque de estacionamento junto à sua
praça. Além das pombas mais ninguém olha para o alto da velha coluna com
dezassete séculos e que um dia ostentou a estátua do deus Sol Invicto na
representação do imperador. A coluna que resistiu a temporais que destruíram a
estátua, ao violento incêndio que a enegreceu e ao roubo dos cruzados que num
excesso de hooliganismo acharam mais
fácil pilhar a cidade irmã que dar batalha ao inimigo, é capaz de não resistir
à indiferença dos cidadãos de Istambul e dos turistas entontecidos pela azáfama
comercial no que foi o coração da cidade.
Se a Coluna de Constantino foi o
coração de Bizâncio, Santa Sofia foi a alma. Uma e outra perderam a sua função
mas Santa Sofia mostra ao mundo, entre as feridas abertas, o espanto dos seus
mosaicos que o azul da mesquita irmã não consegue ofuscar. O coração e alma de
Istambul estão hoje no Corno de Ouro e no Bósforo. É assim Istambul. Uma cidade
viva que recusa o estatuto de museu, que não é velha nem nova e onde no meio de
bairros pobres e decrépitos se podem encontrar velhas igrejas convertidas em
mesquitas, Pamakaristos e São Salvador em Chora, ostentando magníficos
exemplares dos mosaicos bizantinos que escaparam ao fervor religioso e à fúria
rapace de exploradores que fizeram a glória dos louvres espalhados pela Europa. Os mosaicos têm um brilho ali, no
meio dos prédios arruinados e de miúdos que brincam na rua, que nunca teriam
nas paredes de um museu.
Istambul, que outrora foi mais
cosmopolita do que hoje é, como refere Orhan Pamuk citando Théophile Gautier,
onde entre tantas línguas que os seus habitantes falavam se incluía o ladino que os judeus ibéricos para ali
levaram, necessita de uma representação simbólica que lhe foi roubada ou que
perdeu. Já não é possível aos turistas basbaques olharem nos olhos[i] o sultão que todas
as sextas-feiras se dirigia à mesquita como crente devoto, ou suspirar em volta
dos muros do harém (edifício opressivo que apesar da beleza deixa uma marca
desagradável no espírito de quem o visita), imaginando frivolidades sobre as
mulheres que o habitavam. Essa falta transforma Istambul numa simples feira,
rica e bela. Apesar do património riquíssimo, falta-lhe a fruição do gosto
cultural e artístico de Berlim ou Paris, ou a sofisticação moderna e simbólica
do poder económico e da cultura pop de Londres. Roma, destronada por
Constantino, mantém contudo um símbolo que Istambul perdeu. Esvaziada do seu
antigo poder resta-lhe como símbolo aquele corredor de águas profundas e
escuras que liga o centro da Europa ao Mediterrâneo e que enriquece a cidade.
Uma visita de seis dias é insuficiente
para “pintar” retratos à moda dos escritores e jornalistas que visitaram a
cidade no período romântico mesmo que o seu engenho e arte me acompanhassem,
mas não posso deixar de falar da vida simples, pacata, de aldeia, dos bairros
arruinados de Fener e Balat, das velhas casas de madeira, da vista que se
descobre, entre prédios de uma rua estreita e íngreme, sobre o Corno de Ouro e
do bairro de Pêra no outro lado e da calma melancólica dos seus cemitérios onde
os gatos se fazem estátuas vivas imitando os anjinhos de pedra que se vêm nos
nossos. Istambul é tão antiga que já ninguém lhe pergunta a idade e por isso se
permite tomar chá encostada às pedras do velho aqueduto romano, à sombra dos
seus arcos, como se de um vulgar muro de quinta se tratasse. Só aqui se
permitiria que o túmulo do conquistador, um homem sábio e grande que virou do
avesso a história do mundo e granjeou o respeito e o temor da Europa e cujo
feito é usado como sinal do fim da Idade Média, se situe num belo mas singelo
mausoléu de jardim à porta do cemitério da mesquita de Fatih, por onde os
distraídos passam sem se aperceberem da importância do local.
Poucos em Paris saberão quem foi
Haussmann e Manuel da Maia é um completo desconhecido dos portugueses, mas em
Istambul o apressado homem de negócios que desce em direcção a Eminonu não
deixa de dispor de um pouco do seu tempo para rezar no passeio da rua, chegado
à grade do cemitério onde se encosta o túmulo simples e despretensioso de Mimar
Siman, o arquitecto da grandiosa mesquita de Solimão e do hammam de Çemberlitas
frente à coluna de Constantino. Foi a mais comovente representação de cidade
que já vi!
Gostaria de descrever a beleza dos
arcos, das portas, das cimalhas e dos capitéis que ornamentam as mesquitas
grandiosas, falar da calma que se sente nos seus pátios e da vista dos seus
jardins miradouros debruçados das colinas do distrito de Fatih. Da beleza das
suas pedras que tem a mesma cor e textura das pedras ensaboadas dos hammams.
Não saberia o que dizer da mesquita de Ortakoy, jóia barroca de cor rosa, e do
sobressalto de a ver tão frágil à beirinha do Bósforo, um corredor de mar sem
praias que a deixa à mercê da deriva de um qualquer cargueiro que perca o rumo
do mar Negro em manhã de nevoeiro.
Falaria do encanto do grande bazaar
com a sua profusão de jóias e tapetes, da gincana acrobática dos carregadores
de bandejas de chá circulando por entre a multidão, e da explosão dos sentidos
da vista e do olfacto provocado pelas bancas do bazaar das especiarias.
Recomendaria a paciência necessária à
travessia dos túneis de Eminonu, fugindo dos vendedores de relógios,
telemóveis, brinquedos, cuecas e peúgas para alcançar a ponte da Gálata cujos
pescadores parecem alheados das histórias de sultões e concubinas que ali, à
sua frente, no jardim que se vê ao fundo e acima, na ponta que marca o estuário
onde pescam, um dia aconteceram.
Depois descreveria a Gálata e a
Istiklal que começando no convento dos Mevlevis acaba de maneira espantosa, assombrosa e até assustadora na Praça
Taksim, para citar Orhan Pamuk que acrescenta, citando por sua vez Nerval: Lojas brilhantes de comerciantes de moda, de
joalheiros, de confeiteiros e boutiques de roupas finas, mansões inglesas e
francesas, salas de leitura e cafés. E, acrescento eu, de gelados, bares e
restaurantes, casas de câmbio, livrarias, lojas de perfumes e de instrumentos
musicais, Kebabs, peixarias, cordões policiais, manifestações … gás pimenta!
Se fosse capaz descreveria os matizes
das cores dos bosques das margens do Bósforo, das suas pequenas aldeias que
mergulham nas águas escuras e que oferecem uma calma que contrasta com o
bulício da grande metrópole que se vê em fundo e teria de afirmar que as vistas
do Bósforo sobre a cidade mostram-nos uma silhueta teatral e o desenho das
colinas faz-nos lembrar, inevitavelmente, Lisboa. E se a comparação com as
restantes cidades que conheço me permitem dizer sem hesitação que Lisboa vence
todas, aqui a mão hesitaria e tremeria com medo de transferir para a pantalha
do computador a heresia antipatriótica de que Istambul é a mais bela!
E num remate poético teria de afirmar
que a cerimónia do Sema e as danças dos dervixes no convento dos Mevlevis,
património cultural imaterial da humanidade, preenchem o aparente vazio da
representação simbólica da cidade: l’Amor
que move il Sole e l’altre stelle[ii]. Que do meio da
ponte da Gálata fica-nos na retina o Sol poente brincando às escondidas com os
minaretes da mesquita de Solimão e que a beleza do timbre da voz do muezim da
mesquita Mihrimah de Uskudar, na Ásia, nos tocou o espírito quando, no seu
melodioso Adhan (ezan), chamava à
oração do meio-dia: “Deus é grande… Não há outra divindade senão Deus”!
[i] O poeta francês Nerval
jurava que o sultão o viu e que os seus olhares se cruzaram. In “Istambul,
memórias de uma cidade” de Orhan Pamuk
[ii] Último verso da Divina
Comédia de Dante: O amor que move o Sol e as estrelas.
Obrigado por este magnífico texto. Uma referência a ler obrigatoriamente antes de visitar Istambul o que, no meu caso, penso vir a acontecer em 2016.
ResponderEliminarMuito obrigado Fanático_Um. Não hesite, vá e não deixe que uma qualquer e eventual timidez o impeça de um revigorante banho num dos muitos e belos hammans da cidade, sempre no final da viagem.
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