Em jeito
de crónica de viagem, ensaiei com Istambul a escrita de impressões de viagem,
porque tudo já foi dito. Com Nápoles o assunto torna-se mais difícil pois o que
tinha para dizer já Goethe o escreveu. Como ele, apaixonei-me pela cidade e
pela sua localização. Stendhal afirmou que só duas cidades na Europa mereciam
uma visita: Paris e Nápoles. Embora meridional não chego a esses arrebatamentos
e fico-me pela sobriedade germânica de Goethe: “limito-me a escancarar muito os
olhos.”[1]
Se falo
de Nápoles, tenho de juntar todo o litoral do golfo entre as ilhas de Ischia e
Capri, com Sorrento a falar da paixão do Vesúvio pelo golfo, ou não fosse
Vulcano casado com Vénus nascida da espuma das ondas do mar. Sorrento, Capri e
a costa formada na vertente contrária à do Golfo, a que chamam amalfitana, é
residência de deuses, mas o litoral plano junto ao Vesúvio e a cidade de
Nápoles nas encostas a norte de Sorrento, distando desta 26 quilómetros em
linha reta e 50 por estrada, é bem humana na sua velhice e decrepitude a que o
mau gosto da modernidade dos prédios, das auto estradas e dos painéis
publicitários, emprestam ares de adolescente mas não escondem que estamos à
porta do paraíso, onde será preciso voltar para admirar com outras calmas, os
jardins de Ravello, inspiração de Wagner, e as penedias de Capri onde Tibério,
em cujo reinado Cristo foi crucificado, se refugiava com medo que o
assassinassem fazendo-se rodear de jovens e crianças, quais faunos e ninfas, em
orgias inimagináveis mesmo nos dias de hoje, lembrando que nem a paisagem, o ar
límpido e sereno e o azul do mar acalmam os ardores lúbricos de velhos
devassos.
“Bem
podemos dizer, contar, pintar o que quisermos”[2], o
que se vê, como escrevia Goethe, é mais que tudo isso. “O napolitano julga
estar na posse do paraíso”[3] e tem
toda a razão para o crer.
E chegam os que me leem a Nápoles e dirão que
minto. Então e o lixo espalhado pelas ruas? As paredes grafitadas? Os prédios
apalaçados a caírem decrépitos? O trânsito caótico e a falta de respeito pelo
peão? A horda de turistas por todo o lado? A população ruidosa e humilde que nos
faz imaginar receios de rapina? E eu respondo que sempre imaginei as portas do
paraíso a abarrotar de gente alegre, animada, ruidosa, ricos e pobres à espera
de entrar. E se o Vesúvio fizer ameaças corre-se em socorro dos milagres do
sangue de San Gennaro ali ao pé.
É pelo
meio das ruas escuras, apertadas e sujas que entramos na capela de San
Severo para o deleite estético de ver o mármore transformado em véu
deixando que Cristo mostre as suas chagas e todo o sofrimento que transparece
da sua carne e das suas veias que juramos vermos ainda palpitar, e que nenhum
outro Cristo nu consegue mostrar mais do que aquele, tapado pelo mármore.
Bruxaria, apetece repetir. É nas suas ruas decrépitas que vemos um palácio
velho e sujo, onde na sua capela encontramos dois anjos lançarem as suas asas e
braços para fora da tela segurando a Senhora da Misericórdia. Caravaggio,
foragido e assassino aqui se acoitou para pintar uma tela que hoje jamais os
irmãos da Santa Casa se atreveriam a pagar a encomenda e a exibi-la, já que somos
mais puritanos que nos tempos em que os homens piedosos pagavam a bêbados
briguentos, libidinosos e assassinos para pintarem a Madonna.
No
intricado das suas ruas escuras vemos os velhos beijarem as bochechas dos
amigos, como as tias aos sobrinhos, mas também o gesto respeitoso do jovem que
passa as costas da mão pela barba de um homem para de seguida beijar essas
costas da mão, num sinal silencioso das intricadas redes sociais humanas que
não entendemos. No pobre bairro espanhol encontrámos a cozinha da mamma,
onde um napolitano cosmopolita nos recebe de braços abertos, como se fossemos
família.
Mas é
preciso subir ao miradouro de São Martinho, junto ao castelo de Sant’ Elmo para
perceber em baixo o enorme campo de penitentes olhando o paraíso que se estende
pelas costas do Golfo guardado pela forja de Vulcano. E perceber como uma rua
escura, comprida e estreita ali se marca mais visível que as avenidas, como
verdadeira artéria daquele corpo estranho que é a cidade de Nápoles: a Spaccanapoli.
O
trânsito é caótico, mas o buzinar passa rápido da impaciência para a saudação
alegre e prazerosa, ou não fosse esta a terra de polichinelo: “Fomos em duas
caleches porque não nos arriscávamos a conduzir nós próprios no meio da grande
confusão desta cidade”[4], já
era assim antes da invenção do automóvel e da scooter. Visitámos a Chiaia
com as suas montras, em noite de Lua Cheia como calhou em sorte a Goethe mas
que nos escapou, e a rua de Toledo continua cheia de gente às compras. O San
Carlo, o teatro mais antigo da Europa, estava para obras e escondeu-nos a
sua fachada neoclássica. Não entrámos pelo que nem os olhos se deslumbraram nem
a alma ficou arrebatada como aconteceu a Stendhal.
“Vedi
Napoli e poi muori”[5]. deixou-nos Goethe este ditado popular
napolitano, mas nós saímos com a vontade de que se realize como profecia o
sentimento do pai de Goethe que “nunca poderia ser infeliz porque se lembrava
sempre de Nápoles”[6].
[1]
Goethe, 2018. Viagem a Itália. Bertrand Editora, Lisboa, p. 249
[2]
Ibidem, p. 249
[3]
Ibidem, p. 247
[4]
Ibidem, p. 257
[5]
Ibidem, p. 253
[6]
Ibidem, p. 249
Um discritivo com mais de poesia que de brochura turística, também eu fiquei com vontade de ver Nápoles. Bem aja, não lhe faltem as solas.
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