Penso noventa e nove vezes
e nada descubro; deixo de pensar, mergulho em profundo silêncio - e eis que a
verdade se me revela.
Albert Einstein
Fátima, isto é, as aparições em Fátima, celebra um século
de vida. Acredite-se ou não, o fenómeno reveste-se de uma tal importância que
deve ser comemorado e, sobretudo, estudado. O desinteresse, para não chamar
preconceito, dos intelectuais tem impedido o estudo académico do que ali se
passou (e do que ali se passa), deixando que diferentes apologéticas, mais ou
menos sérias, ou mais ou menos burlonas, se apoderassem de Fátima. É
necessário, urgente e útil o estudo científico dos factos que ali ocorreram,
desde logo separar factos de interpretações.
Fátima
não é dogma de Fé, o que significa que nenhum católico está obrigado a
acreditar nas aparições. Portanto acreditar ou não, é uma questão de fé
pessoal. O que não significa que só se deve aceitar o fenómeno quando nele se
acredita. E em que é que se acredita? Que foi Nossa Senhora, mãe de Jesus, e um
anjo quem apareceu aos três pastorinhos de Fátima. Ora é esta crença que é uma
questão de Fé. Outra, um pouco diferente, é acreditar que um fenómeno ali se
deu e que os pastorinhos de Fátima foram testemunhas e/ou protagonistas. Quando
falo de estudo é sobre o fenómeno que falo e não sobre a interpretação mariana,
uma vez que as questões de Fé não se provam, sentem-se.
Dizer que
o fenómeno não passa de uma manipulação da Igreja, como oiço por vezes dizer, é
tão absurdo, tendo em conta as circunstâncias em que se deu e os relatos
comprovados, como absurdo pode parecer a um não crente o facto de Nossa Senhora
poder aparecer sobre os ramos de uma azinheira. É por isso que me tira do sério
ver um padre, no caso o padre Mário de Oliveira, mais conhecido por padre da
Lixa, negar o fenómeno para que se dê, nas suas palavras, uma limpeza mental,
como se achasse que Nossa Senhora teria de lhe pedir, a ele, padre da Lixa,
autorização para aparecer em cima das árvores, só porque ele tem o poder de na
mesa do altar realizar diariamente o absurdo milagre de transformar um bocado
de pão e uma porção de vinho no corpo e sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, o
que em matéria de milagres é mais do que suficiente, no dizer dele. Há absurdos
para todos os gostos. A mim não me choca a crença em absurdos.
E não
houve manipulação? Estudando, mesmo que superficialmente, o assunto parece-me
claro que houve, e não foi pouca. Principalmente a partir do surgimento do
Estado Novo. O fenómeno, tudo indicava, prendia-se com a aflição em que vivia o
mundo e Portugal durante a 1ª guerra mundial. A chamada revolução de Outubro é
posterior, pois só se dá em Novembro (diferença entre o calendário juliano e o gregoriano),
pelo que as referências ao comunismo não seriam entendidas pelo Povo nem pelos
pastorinhos, e começam a aparecer mais tarde. Parece-me evidente a manipulação
sobre os malefícios do comunismo quando não se evidencia a mesma preocupação
sobre os malefícios do fascismo e nazismo. Soa a manipulação por todo os poros
a célebre carta de Lúcia sobre a providência divina para com Salazar. O facto
de reconhecer a manipulação não impede a crença no fenómeno, primeiro, e na
interpretação mariana, depois. Porque também não deixa de ser verdade que,
sabendo-se hoje o que se sabe, não é difícil imaginar a aflição de Nossa
Senhora, ou da entidade que nos visitou, tendo em conta a monstruosidade em que
o mundo e a Europa se transformaram após a primeira guerra mundial, daí o
constante apelo à oração que é um meio para alterar o estado de consciência de
cada um. É, pois, ao estudo do fenómeno que apelo, que ao da manipulação já tem
estudiosos que sobram.
E afinal
que fenómeno se trata? Primeiro o da aparição de um anjo nas imediações da Cova
da Iria, um ano antes de Fátima. Aparição presenciada não só pelos pastorinhos,
mas por outras crianças. Há quem afirmasse ter visto a hóstia aparecer na boca
dos pastorinhos quando o anjo lhes dava a comunhão, apesar de não conseguirem
ver o próprio anjo. Depois foram as aparições de uma senhora tão luminosa como
o Sol. “Ai, que Senhora tão linda! Ai, que Senhora tão bonita”, exclamava
Jacinta, a jovem que tanto sofreria meses depois. Tanto quanto julgo saber
ninguém, para além dos pastorinhos, conseguiu ver as aparições da senhora tão
linda, mas em Outubro dá-se o milagre do sol testemunhado por uma multidão que
ali acorreu quase por milagre, como por milagre se espalhou aquela notícia num
Portugal analfabeto, sem acessibilidades, e sem redes sociais modernas. O
aparecimento daquela multidão na Cova da Iria é já por si um milagre. Esse dia
foi testemunhado por pessoas insuspeitas e imparciais, como o jornalista do
Século. Há também relatos de avistamento do fenómeno fora da Cova da Iria, a
quilómetros de distância (há quem fala em 40 km e tenha explicação científica
para isso). Diz-se também que os centros espíritas que abundavam pelo país
(mais tarde reprimidos pelo Estado Novo), teriam previsto o fenómeno e para que
não houvesse dúvidas, fizeram publicar anúncios com essas previsões. É fenómeno
merecedor de estudo pois a simples teoria da manipulação esbarra com as
evidências.
A cova da
Iria é uma formação geológica característica da região. O nome de Iria talvez
se refira à santa do mesmo nome nascida ali perto, em Tomar, durante a ocupação
bárbara. Mas é estranho que se refiram à cova da Iria e não a Santa Iria. O
Povo não costuma ser desrespeitoso. É assunto para estudar quem era esta Iria.
E Fátima é, nada mais nada menos, que a filha do profeta Maomé casada com o 4º
califa. O topónimo é claramente mouro e mesmo que a lenda da princesa moura
Fátima casada com o conde de Ourém seja verdadeira, o topónimo refere-se sempre
àquela filha do profeta do Islão. É uma curiosidade curiosa, passe o pleonasmo.
Fátima fica exactamente a meio caminho entre o Norte e o Sul de Portugal, outra
curiosidade curiosa. Situa-se no cimo da Serra de Aire conhecida pelas
impressionantes grutas e pelas pegadas de dinossáurios aparecidas numa pedreira.
Num exagero poético poderia dizer que o chão de Portugal é feito com as pedras
da Serra de Aire. Talvez por isso os nossos corações se dirijam para Fátima.
Se
comecei por me queixar da falta do interesse intelectual e científico por
Fátima, acabo fazendo referência a um livro e tese de doutoramento em Geografia
apresentado à faculdade de letras de Coimbra, que me deixou curioso e com
vontade de o ler: “SANTOS, Maria da Graça Lopes da Silva Mouga Poças -
Espiritualidade e território: estudo geográfico de Fátima. Coimbra, 2004”.
Esta é a
minha modesta contribuição para a comemoração do centenário de Fátima. Um
fenómeno surpreendentemente popular que apesar da manipulação, nunca
verdadeiramente se deixou apanhar pela ortodoxia disciplinada da Igreja, e
nunca se intimidou com a soberba intelectual de quem tem da cultura e da
realidade a visão estreita de sombras projetadas em cavernas filosóficas.
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