domingo, 12 de março de 2017

FÁTIMA


Penso noventa e nove vezes e nada descubro; deixo de pensar, mergulho em profundo silêncio - e eis que a verdade se me revela.
Albert Einstein

            Fátima, isto é, as aparições em Fátima, celebra um século de vida. Acredite-se ou não, o fenómeno reveste-se de uma tal importância que deve ser comemorado e, sobretudo, estudado. O desinteresse, para não chamar preconceito, dos intelectuais tem impedido o estudo académico do que ali se passou (e do que ali se passa), deixando que diferentes apologéticas, mais ou menos sérias, ou mais ou menos burlonas, se apoderassem de Fátima. É necessário, urgente e útil o estudo científico dos factos que ali ocorreram, desde logo separar factos de interpretações.
Fátima não é dogma de Fé, o que significa que nenhum católico está obrigado a acreditar nas aparições. Portanto acreditar ou não, é uma questão de fé pessoal. O que não significa que só se deve aceitar o fenómeno quando nele se acredita. E em que é que se acredita? Que foi Nossa Senhora, mãe de Jesus, e um anjo quem apareceu aos três pastorinhos de Fátima. Ora é esta crença que é uma questão de Fé. Outra, um pouco diferente, é acreditar que um fenómeno ali se deu e que os pastorinhos de Fátima foram testemunhas e/ou protagonistas. Quando falo de estudo é sobre o fenómeno que falo e não sobre a interpretação mariana, uma vez que as questões de Fé não se provam, sentem-se.
Dizer que o fenómeno não passa de uma manipulação da Igreja, como oiço por vezes dizer, é tão absurdo, tendo em conta as circunstâncias em que se deu e os relatos comprovados, como absurdo pode parecer a um não crente o facto de Nossa Senhora poder aparecer sobre os ramos de uma azinheira. É por isso que me tira do sério ver um padre, no caso o padre Mário de Oliveira, mais conhecido por padre da Lixa, negar o fenómeno para que se dê, nas suas palavras, uma limpeza mental, como se achasse que Nossa Senhora teria de lhe pedir, a ele, padre da Lixa, autorização para aparecer em cima das árvores, só porque ele tem o poder de na mesa do altar realizar diariamente o absurdo milagre de transformar um bocado de pão e uma porção de vinho no corpo e sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, o que em matéria de milagres é mais do que suficiente, no dizer dele. Há absurdos para todos os gostos. A mim não me choca a crença em absurdos.
E não houve manipulação? Estudando, mesmo que superficialmente, o assunto parece-me claro que houve, e não foi pouca. Principalmente a partir do surgimento do Estado Novo. O fenómeno, tudo indicava, prendia-se com a aflição em que vivia o mundo e Portugal durante a 1ª guerra mundial. A chamada revolução de Outubro é posterior, pois só se dá em Novembro (diferença entre o calendário juliano e o gregoriano), pelo que as referências ao comunismo não seriam entendidas pelo Povo nem pelos pastorinhos, e começam a aparecer mais tarde. Parece-me evidente a manipulação sobre os malefícios do comunismo quando não se evidencia a mesma preocupação sobre os malefícios do fascismo e nazismo. Soa a manipulação por todo os poros a célebre carta de Lúcia sobre a providência divina para com Salazar. O facto de reconhecer a manipulação não impede a crença no fenómeno, primeiro, e na interpretação mariana, depois. Porque também não deixa de ser verdade que, sabendo-se hoje o que se sabe, não é difícil imaginar a aflição de Nossa Senhora, ou da entidade que nos visitou, tendo em conta a monstruosidade em que o mundo e a Europa se transformaram após a primeira guerra mundial, daí o constante apelo à oração que é um meio para alterar o estado de consciência de cada um. É, pois, ao estudo do fenómeno que apelo, que ao da manipulação já tem estudiosos que sobram.
E afinal que fenómeno se trata? Primeiro o da aparição de um anjo nas imediações da Cova da Iria, um ano antes de Fátima. Aparição presenciada não só pelos pastorinhos, mas por outras crianças. Há quem afirmasse ter visto a hóstia aparecer na boca dos pastorinhos quando o anjo lhes dava a comunhão, apesar de não conseguirem ver o próprio anjo. Depois foram as aparições de uma senhora tão luminosa como o Sol. “Ai, que Senhora tão linda! Ai, que Senhora tão bonita”, exclamava Jacinta, a jovem que tanto sofreria meses depois. Tanto quanto julgo saber ninguém, para além dos pastorinhos, conseguiu ver as aparições da senhora tão linda, mas em Outubro dá-se o milagre do sol testemunhado por uma multidão que ali acorreu quase por milagre, como por milagre se espalhou aquela notícia num Portugal analfabeto, sem acessibilidades, e sem redes sociais modernas. O aparecimento daquela multidão na Cova da Iria é já por si um milagre. Esse dia foi testemunhado por pessoas insuspeitas e imparciais, como o jornalista do Século. Há também relatos de avistamento do fenómeno fora da Cova da Iria, a quilómetros de distância (há quem fala em 40 km e tenha explicação científica para isso). Diz-se também que os centros espíritas que abundavam pelo país (mais tarde reprimidos pelo Estado Novo), teriam previsto o fenómeno e para que não houvesse dúvidas, fizeram publicar anúncios com essas previsões. É fenómeno merecedor de estudo pois a simples teoria da manipulação esbarra com as evidências.
A cova da Iria é uma formação geológica característica da região. O nome de Iria talvez se refira à santa do mesmo nome nascida ali perto, em Tomar, durante a ocupação bárbara. Mas é estranho que se refiram à cova da Iria e não a Santa Iria. O Povo não costuma ser desrespeitoso. É assunto para estudar quem era esta Iria. E Fátima é, nada mais nada menos, que a filha do profeta Maomé casada com o 4º califa. O topónimo é claramente mouro e mesmo que a lenda da princesa moura Fátima casada com o conde de Ourém seja verdadeira, o topónimo refere-se sempre àquela filha do profeta do Islão. É uma curiosidade curiosa, passe o pleonasmo. Fátima fica exactamente a meio caminho entre o Norte e o Sul de Portugal, outra curiosidade curiosa. Situa-se no cimo da Serra de Aire conhecida pelas impressionantes grutas e pelas pegadas de dinossáurios aparecidas numa pedreira. Num exagero poético poderia dizer que o chão de Portugal é feito com as pedras da Serra de Aire. Talvez por isso os nossos corações se dirijam para Fátima.
Se comecei por me queixar da falta do interesse intelectual e científico por Fátima, acabo fazendo referência a um livro e tese de doutoramento em Geografia apresentado à faculdade de letras de Coimbra, que me deixou curioso e com vontade de o ler: “SANTOS, Maria da Graça Lopes da Silva Mouga Poças - Espiritualidade e território: estudo geográfico de Fátima. Coimbra, 2004”.
Esta é a minha modesta contribuição para a comemoração do centenário de Fátima. Um fenómeno surpreendentemente popular que apesar da manipulação, nunca verdadeiramente se deixou apanhar pela ortodoxia disciplinada da Igreja, e nunca se intimidou com a soberba intelectual de quem tem da cultura e da realidade a visão estreita de sombras projetadas em cavernas filosóficas.

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