Correndo o risco de nos vermos todos
gregos com a crise, não chega gritar ao vento que não somos iguais a eles. Manda
o bom senso que usemos de cautelas. É que prudência e caldos de galinha nunca
fizeram mal a ninguém. Julgo assim chegada a altura de escrever sobre um caldo a que chamamos canja e que nos veio da China, como quase tudo. E olhem que não
foi fácil.
E agora saltam de
indignação os meus queridos leitores perante a heresia de insinuar que o nosso
amável caldo de galinha e arroz não é de origem lusitana. Mas não! A sua origem
não é portuguesa. Foram os chineses, ou o velho povo Tamil, que a inventaram que
já andam nisto há muitos e bons anos. Diz a tradição que, há quase cinco mil
anos, o “filho do Céu” Huang Di, um dos primeiros cinco imperadores chineses,
cozinhou a primeira congee (do Tamil kanji), tendo usado painço que é mais
antigo que o arroz e o trigo. Por isso, meus caros leitores, da próxima vez que
comerem canja não se esqueçam de a servir em digna loiça de porcelana, que
também é coisa chinesa, porque o humilde caldo tem mais pedigree que a maior parte dos candidatos a marqueses que por aí
vemos.
A congee ou kanji, um caldo
de arroz quase em papa, chegou-nos a bordo das caravelas, como referiu Garcia
de Orta, e talvez tenham sido os portugueses a introduzir-lhe as carnes e a
aligeirar a textura do caldo, que não se anda a roubar pelo mundo fora só para comer
arroz. Serão os portugueses a dar a conhecer ao mundo o caldo de arroz e frango
aportuguesando o tâmil kanji para
canja. Livrem-se portanto de fazer canja com “massinha” que isso é heresia
capaz de nos lançar no fogo dos infernos. Os portugueses adoram, os ingleses
chamam-lhe um mimo e o imperador do Brasil não a dispensava na ópera: que não
se atrevessem a iniciar o 3º acto antes que sua Majestade terminasse de chupar
o último osso da perna. ( – Assim que abrir a temporada, Maria, no lugar das
bolachinhas ou dos rebuçados para a tosse, que não falte um tupperware com
canja no camarote do S. Carlos. Tenho dito!).
Arthur Wellesley, o
famoso duque de Wellington que venceu Napoleão, aprendeu a arte de comer e os
modos de estar à mesa, em Portugal. Riquíssimo depois do saque indiano,
conseguiu, à terceira tentativa, a mão da menina Catharine Pakenham que viria a
ter papel importante na história da canja. Quando o famoso general britânico cá
chegou, para expulsar os franceses, era já um homem abstémio, que reduzira o
consumo de vinho a uma mísera garrafa diária, e um esforçado desportista que
não dispensava o cross diário matinal
de 50 metros frente à sua tenda. Ao desembarcar na foz do Mondego, Wellesley
hospedou-se em casa do pároco de Lavos, cuja mesa encantou o irlandês (mesa de
abade, já se sabe!). O desembarque foi complicadíssimo, devido ao mau tempo, e
durou três dias, pelo que o senhor ficou assim a modos que mal encarado. Uma
mulher do povo, talvez cozinheira do padre António de Macedo, ofereceu-lhe uma
canja de tal modo saborosa que o general, pelo seu próprio punho, escreveu a
receita e enviou-a à esposa (há quem diga que foi a um amigo e não à esposa mas
eu nesse triângulo não me meto, que não tenho jeito para hipotenusa). Cartas de
amor com receitas culinárias, só mesmo de um homem apaixonado!
E agora temos um
problema sério. Diria mesmo, seríssimo. Na receita que por aí se afirma ser a
que consta do livro de memórias da extremada esposa de Wellington,
substituiu-se o arroz por massa capote. Sabendo nós que o arroz se cultiva no
baixo Mondego desde os tempos de D. Dinis, só podemos pensar que o general se
perdeu na tradução, que isto de beber uma única garrafa de vinho por dia,
depois de correr 50 metros, pode cair mal na fraqueza de um homem. Entre o
sotaque figueirense da cozinheira, o latim do pároco e a caligrafia do general,
alguma coisa deve ter acontecido que explique a heresia. Servir massa em
Portugal no início do século XIX, quando se vivia rodeado de arroz, parece-me
estranho, mas talvez a presença do pároco explique o luxo, ou a confusão.
A canja de galinha é,
comprovadamente, milagrosa e cura qualquer doença menos a estupidez dos
políticos que nos meteram nesta crise. Para constipações, diarreias e
recuperação de parturientes não há melhor. Receitas há muitas mas, como estamos
a poucos dias de comemorar o desembarque de Arthur Wellesley (8 de Agosto),
deixo-vos a que serviram ao enjoado general irlandês:
Cozem-se numa panela com
água, uma galinha do campo, orelha de porco salgada, pé de porco, chouriço
velho, chouriço novo, toucinho salgado e toucinho fresco. Na mesma água da
cozedura, tiradas as carnes, abre-se então a massa (ou o arroz) e junta-se
hortaliça e cebola. Serve-se com um pouco de hortelã conforme o gosto, tudo
misturado ou com as carnes à parte. Vinho tinto a acompanhar (não abusar que o
general é abstémio) e como sobremesa: laranjas, como ofereceram ao duque de
Wellington, ou não fosse o vale de Mondego, terra de citrinos, outra chinesice
como a canja.
Bom apetite.
P.S.: eu gosto de massinha na canja.
Receita roubada daqui:
http://www.gastronomias.com/receitas/rec0262.htm
Só de vos imaginar de malga na mão no S. Carlos não consigo parar de rir.
ResponderEliminarTenho qualquer coisa em comum com a tradição.
Para mim canja é com arroz.
Quanto ao mito que faz bem às parturientes, vamos a ver era por isso que no tempo dos nossos bisavós e avós as mulheres tinham tanto filhos.
Vai na volta era para serem tratadas a canja de galinha, que a carne naquela época era escassa.
Bem e lá vou daqui com mais uma grande lição.
Manuela, já assisti a óperas de Wagner com 6 horas em que saberia muito bem uma malguinha de canja ao intervalo. Quem sabe não está aí um nicho de mercado. Canja em pacotinhos, para beber uma palhinha, com o brasão do imperador brasileiro no pacote... Parece-me um bom negócio!
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