Aqui há tempos alguém,
incrédulo pelo facto de eu afirmar não gostar de André Rieu, lançou-me o
desafio de explicar porque não gosto daquele que é o músico mais bem pago. Vou
tentar.
Os que me conhecem
sabem que gosto de música, e de entre os vários géneros de que gosto a chamada “clássica”
é a minha favorita. Gostar de música como a mais nobre das artes podia ser a
única explicação porque não gosto de André Rieu. O que ele faz é
entretenimento, e para isso não se importa de decepar e violentar uma obra de arte.
Pior, embrulha tudo aquilo muito bem embrulhado e oferece à audiência
fazendo-lhe crer que aquilo é a obra de arte tal qual o artista a criou.
Quando há uns anos um
louco decidiu partir o nariz da Nossa Senhora da Pietá do Miguel Ângelo, o
mundo horrorizou-se. Por que razão não me hei-de horrorizar quando oiço
assassinar o Coral da Nona Sinfonia de Beethoven como fui obrigado a ouvir,
perpetrado pelo André Rieu? Este não só parte o nariz como ainda põe luzinhas em
volta a piscar…
Nada tenho contra o entretenimento
e a música pode sê-lo. O que não deve ser é unicamente entretenimento. Muito da
sua audiência julga estar na presença de uma grande orquestra e de um grande
maestro, tal a propaganda que é feita e o dinheiro que ganha. Melhor que aquilo
ouvimos em qualquer sala de concertos do país, sem precisarmos de lá ir fora.
Não tem é aquele aparato, nem amplificação, nem a mascarada dos músicos. Dei-me
ao trabalho de ouvi-lo (acreditem que me foi doloroso). O homem não sabe
dirigir. Os gestos que faz são uma farsa. Os músicos são realmente excelentes e
sabem o que devem fazer para não terem de aturar aqueles gestos patetas. A
música que se ouve tem pouca tensão. São medleys das melhores melodias para
encher o ouvido e todo aquele circo é para distrair. De lágrima fácil, sem
virilidade nos fortissimi e sem
sensibilidade feminina nos pianissimi.
Só lamechice. Não gosto.
Acho piada quando um
grupo de músicos brinca com a chamada música clássica. É preciso saber muito da
música que se toca para brincarmos com ela. Não se impinge como se fosse a obra
original, e se conhecermos a peça achamos graça porque percebemos onde está a
piada. É entretenimento e também gosto. Mas sobretudo gosto das emoções que a
música transporta em si. Sem artefactos de encher o olho. Quando a oiço gosto
de visualizar todas as emoções, ambientes e cores que ela transporta. Se me dão
a ver cenários, roupagens, etc, impedem-me o exercício de visualizar (mesmo na
ópera, cenário a mais estraga). É-me dado de bandeja não exigindo de mim qualquer
esforço de compreensão. Não é o que procuro na música.
Quero ouvir o que o
compositor criou. De me zangar quando discordo da interpretação que um músico
dá a uma ou outra passagem, e gosto de me maravilhar quando sou surpreendido por
um novo matiz que descubro num trecho que julgava conhecer muito bem. Nada
disso se encontra em Rieu. Aquilo soa sempre tudo ao mesmo. Como um licor onde
o gosto do açúcar apaga todos os outros sabores.
Imaginem um bom jogo de
futebol: Real Madrid versus Barcelona. Vocês vão até ao estádio para ver o
Messi e o Ronaldo competindo um contra o outro. Sabem que se vão zangar quando
o Ronaldo falhar aquele lance que parecia tão fácil, e vão ficar à beira de um
ataque de nervos quando o Messi tocar a bola para a frente. Por vezes, se o
jogo empastelar, até se vão aborrecer. Se houver golos será espectacular, mas
se os não houver, saem de lá com a certeza de terem assistido a um bom jogo de
futebol. Agora imaginem que chegam lá e não há jogo nenhum. Os treinadores põem
o Messi e o Ronaldo a fazerem remates à baliza, à vez, durante todo o tempo de
jogo, e enquanto trocam de lugar um grupo de cheerleaders dança no centro do estádio. Ao princípio até acham
piada, mas passado um bocado aborrecem-se: a emoção do jogo desapareceu. A
emoção dos dribles, da zanga com o árbitro, dos empurrões, da táctica e da
estratégia, para ficar unicamente o encantamento dos golos, e nem as pernas
bonitas das moças consolam da desilusão de não ver as dos jogadores. André Rieu
está para a música como um resumo de golos está para um jogo de bola. É giro,
mas não é futebol.
A
seguir aconselho-vos a ouvir aquela que é considerada, talvez, como a melhor
obra musical alguma vez escrita: a abertura da Paixão de S. Mateus de Bach. Trago-vos
uma interpretação de referência protagonizada pelo maestro Karl Richter.
Pessoalmente gosto de um andamento mais rápido, como o do maestro Harnoncourt e
há dias fiquei maravilhado com a interpretação de Ivan Fischer no Mezzo. É como
no futebol: uns gostam mais do Messi e outros do Ronaldo, mas são ambos muito
bons. Interpretam o que está na partitura sem a beliscar.
Foi composta
para ser interpretada no interior de uma igreja luterana, despida de
ornamentos. Só música. Duas orquestras em competição, como no futebol, e mais
dois coros. E depois um terceiro: um coro infantil. Ao início as orquestras
tocam juntas, em uníssono, com os sopros a dialogar entre si. Vejam se
conseguem ouvir em fundo o ritmo do baixo-contínuo, aquele som grave que se
ouve “por baixo” de toda a música (sem boas colunas é difícil). Será a evocação
do caminhar doloroso de Cristo com a cruz às costas? Depois entra um coro a
lamentar-se para logo o outro coro perguntar o que se passa. E os dois coros
dialogam entre si. Um pergunta, o outro responde. Como uma multidão que se
atropela no caminho do calvário. No meio da música surgem então as vozes
infantis. Brancas, sem harmónicos como julgamos ser as vozes dos anjos. Os
meninos exclamam: “Oh inocente Cordeiro de Deus…”
E
pasme-se perante a modernidade de Bach (início do século XVIII). A música
tocada e cantada pelas orquestras e coros está escrita em tom menor, triste e
lamentoso, mas os meninos cantam em tom maior, afirmativo e luminoso, como é
próprio dos anjos que refletem o olhar de Deus. Uma quase bitonalidade criando
enorme tensão. Depois os coros parecem que se perdem, trocando as orquestras
entre si. No fim, com todos de acordo, a peça termina, como é próprio do
barroco, num belo acorde em tom maior, brilhante e luminoso, porque apesar do
lamento e do sofrimento há a esperança na salvação.
Sem
crinolinas e sem rendas. Tudo a preto e branco para não ofuscar a paleta de
cores e o bordado que estão na música. Façam um esforço para a ouvir até ao fim.
O compositor fez o seu trabalho e o ouvinte terá de fazer o seu. A emoção que
ela transporta não vem de bandeja, é preciso entrega da vossa parte. Quem
quiser jogar futebol tem de esfolar as canelas. Não há concessões. Essas ficam
para André Rieu.
Ver: http://euterpe.blog.br/analise-de-obra/os-segredos-da-paixao-segundo-sao-mateus-2
Olá,
ResponderEliminarSou Brasileira. Também não aprovo o que faz o Sr Rieu com a música clássica.
Confesso que nunca havia ouvido a versão dele para o coro da nona sinfonia e fui procurar no Youtube. Doeu-me tanto nos ouvidos que não consegui ouvir o arquivo de 3 minutos!
Seja muito bem vinda a este espaço, Gilda. Melhor que o André Rieu tem o Brasil. Desde logo o maestro John Neschling que foi um dos excelentes directores que passaram pelo teatro de ópera de Lisboa, o teatro Nacional de São Carlos, e que eu tive o prazer de ouvir algumas vezes
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