Em chegando o Outono sabe bem o
aconchego dos marmelos e digam o que disserem a única, a verdadeira, a mais
gostosa, é a marmelada de Odivelas. Já o sabia D. Dinis que gostava de rumar
àqueles outeiros por a achar melhor que a feita por Dona Isabel que lhe dizia: Ide vê-las, senhor, ide vê-las –
referindo-se às moças que a faziam tão bem feita. Por causa disso ficou o sítio
conhecido por Odivelas, deturpação do povo às palavras da santa rainha e ainda
hoje, para quem vem de Lisboa, é forçoso que passe pela estrada do Lumiar que a
bondosa esposa do rei poeta mandava alumiar para que não se perdesse. Tudo são
estórias mas o certo é que o fogoso rei ali se fez sepultar, vá-se lá saber
porquê.
O que tem a ver Odivelas com as
Caldas, perguntam-me, para me pôr aqui a tecer loas à sua marmelada? Pois foi
aqui, nas santas águas das termas, que se tratou D. João V dos excessos de
tanta marmelada comida das mãos de madre Paula, abadessa generosa do mosteiro
de Odivelas que o rei, quando príncipe, visitava amiúde. E é por isso que aqui
vos darei o privilégio de conhecer a única e verdadeira receita da marmelada
tal como a contou a última freira do mosteiro, extinto pelo mata-frades Joaquim António de Aguiar
que preferia o caldeiro dos militares aos marmelos das noviças. Deitemos então
a mão aos marmelos.
Estava uma tarde doce e suave de
Outono quando madre Paula disse ao príncipe: - Joãozinho quinto, vamos fazer marmelada? - O que fez o príncipe dar
um salto para se atirar de pronto aos marmelos. Mas madre Paula fê-lo recuar
pois isto de marmelos tem preceito. Que não eram como aquelas gamboas enormes
da corte, que mais pareciam de silicone e já maduras. E madre Paula
mostrava-lhe a suave penugem que cobre a pele dos verdadeiros marmelos, ainda
um pouco verdes.
É doloroso relatar o que se viu, mas
obriga-me a honestidade a fazê-lo: os queixais do príncipe quedaram-se tombados
até ao peito, e a baba que lhe aparecia na comissura dos lábios era um
espectáculo triste de se ver num futuro rei.
Madre Paula ensinou-lhe então a desbrugar os marmelos e a pô-los logo em
água fria para arrefecer ardores não fosse o entusiasmo ir longe demais antes
do tempo certo. Só depois de descascadinhos e limpos de caroços se coziam então
em lume sempre brando que isto de preliminares quanto mais devagar melhor.
Depois de bem cozidos, teve então o
príncipe autorização para amassar tudo muito bem, podendo usar a colher de pau
e a peneira. O leitor fica autorizado ao passe-vite e à varinha mágica, ao
chicote, cinto de ligas e salto agulha, e todo o catálogo de BDSM, desde que
fique tudo muito bem amassado que agora é a loucura total. E mais não escrevo que
o pudor tolhe-me a pena.
Acalmados então os ânimos, começam as
doçuras. Para cada quilo de massa pôs madre Paula dois quilos de açúcar, que
isto de reis e conventos é outra coisa e o príncipe era generoso. Um exagero,
dir-me-ão, mas era assim no tempo de D. João V, quando ainda tínhamos os brasis
e por isso saía a marmelada branquinha ao gosto da época. Porquê pôr um quando se podem pôr dois, foi sempre o mote do
príncipe como se viu nos dois carrilhões de Mafra que é hoje causa de diabetes
no orçamento da cultura. Hoje, com a moda dos bronzeados, admite-se doçura
igual à badalhoquice da amassadura, cortando-se o açúcar quase pela metade,
ficando a marmelada assim a modos que mais afogueada.
E agora é que é preciso paciência,
caro leitor, mas a marmelada ou é feita como deve ser, ou então contente-se com
uma rapidinha ao supermercado para a compra da compota.
Prepara-se um banho de doçura, na
proporção de 2.5 dl de água por cada quilo de açúcar e levanta-se fervura até
atingir o ponto de rebuçado. E aqui terá o leitor de estar atento que o açúcar,
como as mulheres, é enganador. Pensando que está tudo no ponto, arrisca-se a
uma recusa que azeda a marmelada. Saberá que o ponto foi atingido quando, no
meio dos gemidos da canseira, deitar uma bola da pasta do açúcar numa pinga de
água fria e aquela coalhar.
Agora pare um pouco, tire do lume e
junte ao açúcar a massa bem desfeita com a colher e mexa, mexa muito bem. Volta
então ao lume até levantar ampolas, mas sem magoar e sem queimar. Nesse momento
pode então apagar a chama do lume mas continue a bater, a bater, até esfriar.
Gostava a madre Paula, depois de
esfriar, de deitar a marmelada assim feita em pratos rasos para que secasse, deixando
o açúcar cristalizar como ao amor de Stendhal. Isto porque o príncipe porcalhão
gostava de a cortar em cubinhos e comê-la à mão. Nós que somos civilizados,
deitamo-la em taças e servimos a barrar o pão.
Não esqueça: nada de gamboas, mas
marmelos ainda verdes com penugem agradável ao tacto. Depois, muita paciência e
doçura. Se os marmelos forem já maduros, não desanime, porque então já a
vontade de comer vai dispensando alguma da doçura e sempre pode aventurar-se a
uma tarte ou mesmo um strudel. No fim
reze uma Ave Maria e um Padre Nosso pelas almas da madre Paula e de D. João V,
para que não digam que somos mal agradecidos.
Aos mais jovens, se não sabem o que
são marmelos e não perceberam nada da receita, perguntem aos avós. E treinem,
que o saber nasce da experiência.
Sem comentários:
Enviar um comentário