Justamente o bife chegava, fumegante,
chiando na frigideirinha de barro.
(capítulo
XVII de “Os Maias”, de Eça de Queiroz)
Nascido entre cafés e
botequins mais ou menos aristocráticos, o bife de Lisboa depressa se
democratizou transformando-se nas bifanas e pregos de arraiais e roulottes cuja
fama alcançou mundo, coisa que comprovei quando, junto a um resto do muro que
separava Berlim, na moderna Potsdamer
platz, um estudante disfarçado de guarda do muro, para gáudio de turistas,
me perguntou se por acaso não trazia escondida na mochila uma bifana de Lisboa.
Tudo
terá talvez começado quando um napolitano de nome Marrare decidiu abrir vários
botequins e cafés numa Lisboa boémia que se afrancesava com a corte de Junot,
que substituía a dos Braganças apreciadores de coxas de frango nas praias do
Brasil.
Os estabelecimentos do
Marrare estendiam-se desde o cais do Sodré, onde se serviam viajantes
apressados, passavam pelo São Carlos, onde se combinavam pateadas e de onde
Carlos da Maia viu pela primeira vez Maria Eduarda, e alcandoravam-se no Chiado
alimentado a burguesia. Mas foi no Arco da Bandeira, ao Rossio, no Marrare das sete portas, que nasceu o
bife alto e suculento envolto em natas. Depois veio o bife à café, do Nicola e do Tavares, onde as natas se substituem
por leite e mostarda. Seguiram-se a cervejaria Jansen, a Taverna inglesa
e mais tarde a Trindade e a Portugália. O império colonial fê-lo
passar o equador e levou-o tão longe como ao Sul de África onde eu comia os
bifes com o pomposo nome de bife à
princesa em homenagem a uma neta da rainha Vitória que um dia visitou
Lourenço Marques. Nos talhos servia-se uma versão mais popular, com fatia mais
fina, às vezes de porco, temperado em sal e alho e frito em banha de porco.
Quando alguém decidiu colocar-lhe um ovo frito a cavalo inventou o bitoque: o
mais genuíno prato português de botequim, com carne que leva nome inglês.
O
meu sogro, cujo bitoque alcançou fama na cidade da Guarda, e que eu confirmei
ainda antes de ele saber que lhe roubava a filha, tempera os bifes numa
marinada de vinho branco, sal, pimenta, alho e piripiri, tudo rematado com
folha de louro. Depois frita-os em banha, e antes mesmo que estejam prontos
retira-os para uma frigideira de barro como no aristocrático Tavares, a fazer
fé no Eça. Para as frigideiras de barro descia o meu sogro de propósito até
Lisboa, ao bairro da Mouraria, para as comprar nas olarias que então ali
existiam, herança de artesãos mouros expulsos de entre os muros da cidade.
Posto o bife no barro,
vai ao lume com um pouco de manteiga e uma pinga de leite a formar molho com os
sucos da carne. Assim fumegando e chiando,
como diz o Eça, com um ovo estrelado a cavalo, servia este hábito lisboeta aos
clientes da alta cidade da Guarda. Ao lado, acompanhando, as batatas fritas o
arroz branco e os pickles.
Se
quiser aburguesar o prato faça como no Marrare.
Não com o talher de prata como no célebre botequim, que o proletário bitoque
estranharia o luxo, mas servindo as batatas fritas à parte, encapotadas em
guardanapo de pano. As crianças no entanto acharão graça a uma cornucópia de
papel!
Sirvo todos os dias uns desse à Marrare e tipo bitoque, mas aposto que não são tão bons como os do Avô. Infelizmente não provei nenhum. Tenho de tratar disso.
ResponderEliminarTemos de tratar disso!
EliminarGrande homenagem ao teu sogro e ao bitoque de que tanto gosto, para a próxima não me esquecerei de experimentar
EliminarTemos de organizar um jantar de família só com bitoques! :))
ResponderEliminarNunca a tão tradicional louça das Caldas teve o prazer de ser leito de tão afamado petisco da cozinha da Guarda, mas só por não ser de barro. Cá pelo Oeste bifana é uma fatia de carne de porco frita, mais ou menos condimentada, dentro de duas fatias de pão, a que se junta normalmente a mostarda nacional ou a maionaise aportuguesada. Não pode faltar o bom copo de tinto ou a bejeca estupidamente fresca.
ResponderEliminarRevigorante é saber dos costumes de outras terras, ainda mais quando a história se reparte de tão diferentes localizações, como a nobre e fidalga Lisboa e a frieza da Guarda.
Atribuo o galardão Prato de Louça das Caldas de Ouro, a este fabuloso texto.
A louça das Caldas tem esta virtude. Tanto serve a mais humilde bifana do Oeste como o aristocrático beef à Marrare. Muito obrigado pelo galardão. Já o pus na estante digital.
ResponderEliminarA pastelaria em Lourenço Marques onde degustava os famosos bibes à princesa era do meu avô Domingos Fernandes.
ResponderEliminarObrigado pela boa lembrança
Muito obrigado pela indicação. Era muito miúdo e lembro-me também de comer uns bifes com molho de natas na pastelaria Ateneia na avenida Fernão de Magalhães em frente ao prédio do Montepio, hoje da TAP.
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