A
biografia dos pobres e dos simples é, para usar a terminologia em voga,
descomplicada. Basta por vezes um epíteto para os definir. A dos famosos, pelo
contrário, é cheia de glamour, mesmo
a dos tempos em que eram simples e desconhecidos.
Lídia
Jorge, em entrevista à televisão, dissertando sobre a alegria dos que
regressaram a Portugal após uma vida de exílio, possível por causa do 25 de
Abril, afirmou que ela própria assim fez. Que não regressava das terras de
França ou da Argélia que acolheram os opositores ao regime derrubado, como
certamente pensou quem a ouviu, foi facto que não julgou necessário esclarecer.
Casada com um militar em serviço na guerra colonial, regressou de África onde ensinou nos liceus coloniais de Angola e Moçambique, como professora do ensino público português. O brilho das letras da excelente escritora acabou por transmutar o retornado em exilado.
Casada com um militar em serviço na guerra colonial, regressou de África onde ensinou nos liceus coloniais de Angola e Moçambique, como professora do ensino público português. O brilho das letras da excelente escritora acabou por transmutar o retornado em exilado.
Outros,
às meias verdades mais ou menos épicas a lembrar Ulisses ou Penélopes, preferem
a técnica de diversão: realçar o positivo e enterrar o negativo.
Otelo
Saraiva de Carvalho, que a par de Salgueiro Maia arriscou tudo, vida e
carreira, para fazer o 25 de Abril, enquanto outros preferiram esperar para ver
e aparecer, diz sempre a quem o quer ouvir, que desde pequenino lhe desgostavam
as injustiças que via na sua, e minha, Moçambique natal, daí a ânsia de as
combater.
Levou
tempo a ver de onde vinham as injustiças e com 17 anos ainda participava na
mocidade portuguesa, num liceu de uma colónia que pouco tempo antes se agitara
em torno da candidatura de Norton de Matos. Mais tarde não hesitou em integrar
as forças armadas que lutavam contra os movimentos independentistas das
colónias e em dar instrução à Legião Portuguesa, força paramilitar de cariz
marcadamente fascista que apoiava a ditadura portuguesa que permitia as
injustiças que via quando menino.
Felizmente
para nós mudou a tempo de opinião e, num gesto que o redime, libertou-nos da
injustiça. Otelo prefere no entanto lembrar-se da inocência do menino que imagina
ter sido e esquecer-se da militância fascista do adulto.
Eu, que
como a maioria dos retornados pouca ou nenhuma consciência política tinha até
ao 25 de Abril, larguei aos 12 anos a mocidade portuguesa a que me obrigaram
por não gostar dos seus tiques autoritários. Tal como a Otelo desgostam-me as
injustiças mas não tenho o mérito de um gesto redentor como o dele para apagar a
inércia resultante daquela ignorância política em que nos adormeciam. Preferiria
no entanto aparecer numa biografia como arrependido que se redime, do que desmemoriado
e credor. Mas isso sou eu que não logrei alcançar a fama e a honra que advém
dos grandes feitos. Por isso na minha biografia fui, sou e serei sempre
retornado sem honras de exilado ou de libertador dos povos.
Filho
de Adão e de Eva sinto-me exilado de um paraíso perdido, mas não há Joyce que
cante o vulgar Bloom que sou. Retornado serei. Intrépido descobridor de
virtudes próprias e dourador de memórias é que não.
E agora
fiquem com mais outra biografia fantasiosa, a do retornado Vasco da Gama, o
mais bruto dos nossos descobridores, na voz de Plácido Domingo cantando O Paradis, da ópera de Meyerbeer,
“L’Africaine”.
Caro João Alves,
ResponderEliminarIsto não é para publicar porque não está relacionado com mais este seu magnífico texto. Mas não posso deixar de lhe dizer que estou totalmente de acordo consigo e com os comentários que escreveu no blogue Valkirio , a propósito da ópera não encenada. Estive fora de Portugal, praticamente sem acesso a mail e, hoje, penso ser a fora de tempo ir lá comentar, até porque há várias entradas posteriores.
Muito obrigado pelos seus comentários, concordo integralmente com eles, eu que sou um "fanático da ópera" (e também um grande admirador do Carta das Caldas!
Cumprimentos
Caro Fanático, magnífico é exagero. Muito obrigado pelo seu comentário.
EliminarO otelo é um terrorista.
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