sexta-feira, 9 de maio de 2014

BIOGRAFIAS DE RETORNADOS

A biografia dos pobres e dos simples é, para usar a terminologia em voga, descomplicada. Basta por vezes um epíteto para os definir. A dos famosos, pelo contrário, é cheia de glamour, mesmo a dos tempos em que eram simples e desconhecidos.
Lídia Jorge, em entrevista à televisão, dissertando sobre a alegria dos que regressaram a Portugal após uma vida de exílio, possível por causa do 25 de Abril, afirmou que ela própria assim fez. Que não regressava das terras de França ou da Argélia que acolheram os opositores ao regime derrubado, como certamente pensou quem a ouviu, foi facto que não julgou necessário esclarecer.

Casada com um militar em serviço na guerra colonial, regressou de África onde ensinou nos liceus coloniais de Angola e Moçambique, como professora do ensino público português. O brilho das letras da excelente escritora acabou por transmutar o retornado em exilado.
Outros, às meias verdades mais ou menos épicas a lembrar Ulisses ou Penélopes, preferem a técnica de diversão: realçar o positivo e enterrar o negativo.
Otelo Saraiva de Carvalho, que a par de Salgueiro Maia arriscou tudo, vida e carreira, para fazer o 25 de Abril, enquanto outros preferiram esperar para ver e aparecer, diz sempre a quem o quer ouvir, que desde pequenino lhe desgostavam as injustiças que via na sua, e minha, Moçambique natal, daí a ânsia de as combater.
Levou tempo a ver de onde vinham as injustiças e com 17 anos ainda participava na mocidade portuguesa, num liceu de uma colónia que pouco tempo antes se agitara em torno da candidatura de Norton de Matos. Mais tarde não hesitou em integrar as forças armadas que lutavam contra os movimentos independentistas das colónias e em dar instrução à Legião Portuguesa, força paramilitar de cariz marcadamente fascista que apoiava a ditadura portuguesa que permitia as injustiças que via quando menino.
Felizmente para nós mudou a tempo de opinião e, num gesto que o redime, libertou-nos da injustiça. Otelo prefere no entanto lembrar-se da inocência do menino que imagina ter sido e esquecer-se da militância fascista do adulto.
Eu, que como a maioria dos retornados pouca ou nenhuma consciência política tinha até ao 25 de Abril, larguei aos 12 anos a mocidade portuguesa a que me obrigaram por não gostar dos seus tiques autoritários. Tal como a Otelo desgostam-me as injustiças mas não tenho o mérito de um gesto redentor como o dele para apagar a inércia resultante daquela ignorância política em que nos adormeciam. Preferiria no entanto aparecer numa biografia como arrependido que se redime, do que desmemoriado e credor. Mas isso sou eu que não logrei alcançar a fama e a honra que advém dos grandes feitos. Por isso na minha biografia fui, sou e serei sempre retornado sem honras de exilado ou de libertador dos povos.
Filho de Adão e de Eva sinto-me exilado de um paraíso perdido, mas não há Joyce que cante o vulgar Bloom que sou. Retornado serei. Intrépido descobridor de virtudes próprias e dourador de memórias é que não.
E agora fiquem com mais outra biografia fantasiosa, a do retornado Vasco da Gama, o mais bruto dos nossos descobridores, na voz de Plácido Domingo cantando O Paradis, da ópera de Meyerbeer, “L’Africaine”.


3 comentários:

  1. Caro João Alves,
    Isto não é para publicar porque não está relacionado com mais este seu magnífico texto. Mas não posso deixar de lhe dizer que estou totalmente de acordo consigo e com os comentários que escreveu no blogue Valkirio , a propósito da ópera não encenada. Estive fora de Portugal, praticamente sem acesso a mail e, hoje, penso ser a fora de tempo ir lá comentar, até porque há várias entradas posteriores.
    Muito obrigado pelos seus comentários, concordo integralmente com eles, eu que sou um "fanático da ópera" (e também um grande admirador do Carta das Caldas!
    Cumprimentos

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    1. Caro Fanático, magnífico é exagero. Muito obrigado pelo seu comentário.

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