Fui a
uma festa de verão tão ao gosto da época. A abrir o espectáculo, o rancho de
Alvorninha mostrou-nos o que se entendia, nos idos do século de Eça e Camilo,
por cultura popular: Da bruteza do trabalho do campo, só aligeirado pela
elevação do espírito ao som das “ave marias” na torre da Igreja, saía a
elegância, a sensibilidade e a sensualidade do movimento dos corpos na dança a
despertar o erotismo de uma castidade que precisava de pau-de-cabeleira para a
guardar. A música descia dos salões ao arraial, que o povo até dançava mazurkas
polacas trazidas a par das baionetas dos soldados de Napoleão que sonhou uma
Europa debaixo da sua garra: dançava-se a mazurka de Cabo Verde aos Urais.
Terminada
a preleção de um tempo perdido a deixar saudades, eis que do microfone sai a
voz do inenarrável “enche chouriços” que a Câmara das Caldas tem para estas
ocasiões, anunciando um ícone da atual “cultura popular” que canta, no dizer do
apresentador, com alegria porque para tristezas já basta (toda a gente sabe a
tristeza que causam um Bach, um Tavares Belo, ou uma mazurka trazida pela
guerra…). Depois de tecer loas aos eleitos que governam a cidade e que jantavam
ali mesmo, lembrou ao povo a sorte que tinham por tais políticos que assim
alargaram os cordões à bolsa para dar tal bodo aos pobres, e rematou prometendo
surpresas deliciosas relacionadas com o desapertar da braguilha das calças de
um locutor da rádio local. E as luzes prepararam-se para a entrada de Zé do
Pipo (o tal ícone), que irrompe no palco com as suas meninas, atrasado em
relação ao anúncio do apresentador resultando numa apoteose pífia perante o
delírio basbaque de um povo que já se esqueceu de cantar e dançar porque agora
só vai a “concertos”, e por isso se julga mais culto que os avós. Do que se
prometia nada se cumpriu: nem cultura nem alegria. Não houve erotismo, mas
falta de sensualidade, a elegância tropeçou na parafernália acústica e
luminosa, e a graça rimou com desgraça. A música foi indigente, sem a qualidade
da antiga música popular, a ritmar uma dança pouco casta que nem para
pornografia serve. Chunga é o adjetivo certo para esta “cultura” (não cheguei a
ver aquela coisa da braguilha, o que me prejudica a formação cultural). Ao
contrário do que tinha dito o locutor de serviço que prometeu cultura e
alegria, foi toda uma tristeza que me causou profunda depressão. A quem mando a
conta da fluoxetina? Apetece dizer: Puta que pariu esta “cultura popular”!
E assim vai o nosso País!
ResponderEliminarO país e o mundo. Já os povos não dançam nem cantam numa verdadeira cultura popular. Impera o entretenimento reles e enfadonho.
EliminarLembrando Ariano Suassuna, escritor brasileiro que foi embora antes do combinado, que se referia a um "Zé do Pipo" seu conterrâneo e correndo o risco de se dizer que a nossa versão é de uma genialidade imensa, fico horrorizado só de pensar que teremos de criar uma palavra no nosso dicionário que classifique Bach ou Tavares Belo.
ResponderEliminarJá vai o tempo em que a velhinha louça, essa sim de qualidade e que só se encontra em feiras de velharias, era usada e apreciada pelo povo, ao invés desses novos utensílios mal reciclados que habitam os pensamentos da populaça.