quinta-feira, 16 de abril de 2015

IL EST INTERDIT D’INTERDIRE


Vai assim em francês porque foi na língua de Voltaire que picharam as paredes da Sorbonne.
Na minha juventude tive um vizinho que era agente da PIDE/DGS. Homem simpático e afável carregava um fardo que lhe amargurava a alma mas alimentava o estômago. Como era culto e sabia línguas acumulava com a censura a tudo o que fosse inglês e a sua biblioteca pejava de livros e folhetos proibidos. Uma vez viu-se obrigado a censurar a capa de um disco, já não sei de que grupo de rock, porque trazia a letra das músicas. As músicas podiam passar mas o texto escarrapachado na capa, apesar de em inglês, não. Com ar de menino que foi ao pote do mel trouxe-nos o disco com a capa, para que pudéssemos usufruir daquilo que acabara de proibir, num exorcismo possível dos seus demónios. Outros discos trazidos por ele mostraram-nos então um mundo para além do cinzentismo daquele fascismo que até desse nome tinha medo. E foi assim que conheci Zeca Afonso e Francisco Fanhais.
Um dia entrei na biblioteca deste meu vizinho e, como Ali Babá, maravilhei-me com aquela “caverna” de tesouros inalcançáveis. Escondido nas estantes, entre outros, “Fuenteovejuna” de Lope de Vega que o regime permitiu ao Teatro experimental de Cascais levar às colónias (difícil proibir um escritor do século de ouro espanhol). Nas paredes, cartazes do “Maio de 68”. Junto ao cartaz dos direitos do Homem, impressionou-me a frase: “É proibido proibir”, e foi como se um campo coberto de flores de todas as cores se abrisse à minha frente.
Era da PIDE/DGS e da censura este meu vizinho que me abria postigos gradados por onde eu espreitava um mundo de liberdade. Pensava ele que assim, em doses homeopáticas, talvez não nos fizesse muito mal enquanto lhe aliviava a consciência. A ditadura velava por nós, proibindo-nos o pensamento livre que só nos podia causar inquietações e angústias, terríveis para o bom funcionamento do coração e do fígado, como se sabe. Agora são os filhos e os netos do “Maio de 68” que nos espartilham a vida com proibições, numa constante preocupação com o nosso bem-estar. Para diferentes regimes, diferentes os métodos com que “nos tratam da saúde”. Não foi nas paredes de um “PIDE” que li a célebre frase que nos prometia um mundo sem proibições? Quem me mandou acreditar?
E volto às paredes dos boulevards de Saint-Michel e Saint-Germain, que tanta sobriedade não se aguenta: “O álcool mata, tomem LSD”, que talvez vejam um coelho vestido de arco-íris!  

8 comentários:

  1. Obrigado por mais este belo texto, João Alves. Também eu sou desse tempo e li com muito agrado o que escreveu. Os tempos mudam mas a essência do comportamento humano é sempre a mesma, então ou agora, aqui, em Paris ou por esse mundo fora.

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    1. Obrigado pelo cumprimento. De facto a pulsão de proibir é forte em qualquer governo. Sempre para nosso bem, pobres crianças indefesas.

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  2. É mesmo verdade?!
    Parece um conto :)

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  3. Joao Morgado Alberto17 de abril de 2015 às 21:44

    "As pessoas "crescidas" têm sempre necessidade de explicações... Nunca compreendem nada sozinhas e é fatigante para as crianças estarem sempre a dar explicações.".. Cumps.

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  4. Pois é, até parece que os gajos da PIDE eram uns gajos porreiros.

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    1. Os gajos da PIDE não eram porreiros mas às vezes parece que fizeram escola mesmo entre os seus opositores. Foi isso que quis dizer Luís Eme. Espero que não me tenha treslido. Outra coisa diferente de ser ou não porreiro, era o facto de pessoas vestirem casacos que não lhes assentavam bem e não terem a coragem de os despir, que era o que acontecia a este meu vizinho. A mim, pobre escriba destas crónicas, resta-me relatar o que vi, ouvi e vivi, fugindo a julgamentos ou a processos de intenções, tão só chamando a atenção para a forma como o poder gosta de tratar os administrados. É que não acredito num mundo a preto e branco. Obrigado por comentar.

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