O latim do povo nunca foi grande coisa,
percebe bem o Dominus vobiscum mas
quando titubeia Et cum spiritu tuo, entaramela-se-lhe a língua e sai goliarda.
Destas confusões nasce por vezes coisa acertada, como o dia de hoje. Celebra o
povo, e eu com ele, o dia de Nossa Senhora da Conceição enquanto a Igreja
celebra o dia da Imaculada Conceição. Parecendo que é o mesmo, não é! Embora
resulte do mau latim do povo, o certo é que uma é mãe e outra filha.
Existe uma ideia há muito enraizada que
falar da imaculada conceição é meter o pecado ao barulho, logo o sexo. É até
ocasião para anedotas e risos alvares. No entanto toda a gente sabe que desde
que não haja abusos, e dentro das regras impostas, a Igreja não considera o
sexo pecado (!). Melhor fazê-lo que ficar
abrasado, já dizia S. Paulo que conhecia bem as brasas que nos atormentam,
e aconselhava os membros do casal a não se negarem um ao outro.
O assunto prende-se não com sexo, mas
com o pecado original, o da desobediência: a ingestão do fruto proibido.
Comeram os nossos pais primordiais o fruto do conhecimento. Ou porque estivesse
verde ou maduro demais, o certo é que o resultado não foi satisfatório tendo em
conta a ignorância que por aí grassa. A única coisa de que tiveram conhecimento
foi saberem-se nus e mortais. Consequentemente, perceberem a piada do sexo e já
que iam morrer, quanto mais melhor. O que faziam por instinto passaram a fazer
por gozo, mas daí a ser pecado vai um grande passo. Certos bispos e padres
porém, por terem a perna curta, ameaçam com as chamas do inferno.
Diz a Igreja que Nossa Senhora nasceu,
ou antes, foi concebida, logo no ventre de sua mãe, sem o pecado original que
fustiga toda a humanidade condenada a pagar pelo crime dos primeiros progenitores.
Eram os pais de Nossa Senhora bem casados e sem dívidas ao fisco, logo o sexo
que usaram para a conceber era honesto e sem sombra de pecado. Nossa Senhora
nasceu isenta do pecado que afecta toda a Humanidade, apesar do sexo que lhe
deu origem. Isto é o que significa a Imaculada Conceição: aquela senhora em
cima da lua pisando com desprezo a serpente maligna.
Esclarecida a dúvida, onde fica a
diferença? Se Nossa Senhora foi concebida, também concebeu, e o povo, que foge
das intricadas considerações teológicas como o diabo da cruz, entendeu, e muito
bem, que a Senhora da Conceição queria dizer isso mesmo: a mulher que concebe.
Isto é, a Mãe. Torna-se assim Nossa Senhora no arquétipo da Mãe, segundo o pensar
do povo que não faz ideia do significado do palavrão.
E foi à Senhora da Conceição, à Mãe,
que D. João IV, o da Restauração tão falada ultimamente, decidiu ceder a coroa
de Portugal para que ela governasse sobre nós como rainha e protectora. E fez o
rei muito bem porque Portugal precisa de uma mãe que cuide da Pátria, que os
pais que tem tido se revelaram ora ausentes ora padrastos. Uma Mátria e não Pátria,
como queria Natália Correia, e lá está a imagem da nossa rainha, no seu paço de
Vila Viçosa, em cima da Lua, não filha concebida, mas mãe com seu filho ao
colo.
Mais ordenou o rei que os estudantes
universitários, antes de se licenciarem, jurassem defender a Imaculada
Conceição da Mãe de Deus. A prática caiu em desuso o que explica o estado a que
isto chegou. Os licenciados de agora não fazem a mínima ideia do significado de
imaculada e a Conceição é uma estagiária boazona que conheceram na queima das
fitas. A pressa com que se tiram licenciaturas não dá para exames quanto mais
para juramentos…
O Papa Pio IX, incomodado com a
história de o povo ter deixado cair a imaculada para ficar só com a conceição,
decidiu pôr fim à confusão e transformou o que era crença em dogma.
Corria o ano de 1854 e as cinzas da
revolução francesa encontravam-se finalmente apagadas, pelo que era o mundo um lugar
decente e bem frequentado. Havia a guerra da Crimeia, mas ficava longe e não
passava de um playground onde a
aristocracia europeia descarregava a testosterona. Com tanta decência surgiu
nesse ano o partido republicano americano, ainda sem Sarah Palin, que reivindicava
uma ideia fracturante da esquerda: o fim da escravatura. Não tinha assim Sua Santidade
nada que o preocupasse, pelo que a ideia de Nossa Senhora isenta do pecado
original animou os corredores do Vaticano. Tanta animação resultou na Bula
Ineffabilis Deus.
A crença na Imaculada Conceição, isto
é, Nossa Senhora concebida e nascida sem a mancha do pecado original, passa a
obrigatória para todos os católicos lançando de uma assentada para a excomunhão
póstuma S. Tomás de Aquino, S. Bernardo e o papa Bento XIV, que em séculos
anteriores tinham achado a ideia disparatada. O povo católico diz que sim, mas
o coração mantém a devoção antiga à Senhora da Conceição: à Mãe. Os cristãos
ortodoxos, inimigos de novidades como ortodoxos que se
prezam, não aceitam. Os protestantes, como de costume, protestam fazendo jus ao
nome.
Curiosamente, o Islão já havia
afirmado a isenção do pecado em Nossa Senhora muito antes de Pio IX, o que não
fazendo do Papa um bom muçulmano fez dele um crente do adágio de que vêm as ajudas
de onde menos se espera.
É caso para dizer que não havia
necessidade!
Fotos: Senhora da Conceição, padroeira de Portugal –
Matriz de Vila Viçosa
Imaculada Conceição - basílica de Santa Maria Maior,
Bergamo, Itália
As coisas que nos ensinas, é de louvar obrigada
ResponderEliminarObrigado. Espero ter divertido também, pois é dia de festa e eu gosto muito da Senhora da Conceição.
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