Sócrates encontrava-se em Belém. Viera protestar e aproveitara para saborear os pastéis, trincando aqui e acolá a massa estaladiça enquanto, com a língua, sorvia o creme dourado que escorria. Depois de deglutir o bocado trincado, interrompia o gozo das papilas gustativas para exercitar as cordas vocais gritando insultos à troika, aos conselheiros, aos governantes e ao estúpido do garoto que deixara cair o gelado sobre os sapatos acabadinhos de engraxar. Xantipa proibira-o terminantemente de ir a Belém sem os sapatos a brilhar. O que ela não precisava, dizia, era que a Maria que lá vivia, a acusasse de não cuidar convenientemente do seu homem, e Sócrates não teve outro remédio senão dar-lhes uma boa escovadela.
Entre um grito e uma trincadela viu, à sua frente, Aristófanes gritando a ponto de enrouquecer.
- BANDIDOS!
- Aristófanes, companheiro, tu por aqui?
- Sócrates, amigo, onde querias que estivesse? Vir hoje a Belém era um imperativo categórico.
- Deixa-te disso, que o filósofo aqui sou eu. Admiro-me porque pensei que tinhas entrado na casa dos segredos.
- Nem me fales nisso. Candidatei-me mas não fui aceite. Se me aguentasse pelo menos duas semanas, sempre me aliviava as contas em atraso, mas não. Exigiram-me exames médicos e… olha, foi uma desgraça.
- Não me digas? E que tens tu?
- O fígado!
- Que tens fígado já eu sabia. E depois?
- É isso mesmo, já quase não o tenho. Mas não é tudo, em compensação os pulmões têm mais alcatrão que as ruas do meu bairro.
- E já foste ao médico?
- Já. Um bandido… BANDIDO – aproveitou Aristófanes para gritar ao ministro que subia a rampa entre o brilho dos capacetes da guarda republicana, e continuou.
- Um bandido. Vê lá tu que me pôs a pão e água e proibiu-me de frequentar a tabacaria, aquela do Camões, que tem uns cubanos que não se vendem sem primeiro passarem no teste do Fidel.
- Não me digas? Ele há coisas. Mas vejo ali o dono do restaurante que te pôs o fígado nesse estado. Porque não aproveitas e dizes-lhe umas verdades? Porque não o acusas dos teus males?
- Tu não bates bem Sócrates. Então o homem só queria o meu bem. Além disso está aqui na manif, não está. Só pode ser boa pessoa.
- Mas olha, também ali está o sócio da tabacaria do Camões. Se fosse a ti ia lá e enfiava-lhe um charuto pela boca dentro.
- Coitado, tão bom homem. Vê lá tu que até lhe pagam uma fortuna para gerir uma fundação cultural.
- Mas então aguenta-te com o médico e com a cura.
- Mas Sócrates, aguentar eu aguentava, mas o tratamento mata-me. Que hei-de fazer?
- Olha, grita pr’aí. Grita alto, Aristófanes, porque ainda agora atravessou o Pátio dos Bichos o conselheiro que te matou o fígado enquanto te matava o bicho. Mas se eu fosse a ti gritava também com aqueles dois que ali estão. Se o médico não presta, olha que aqueles fizeram um belo serviço em te porem nesse estado.
- Achas?
- Se não gritas com eles, ainda os chamam para te tratarem da saúde. E entre uns e outros o diabo que escolha.
Aristófanes olhou, desconsolado, o amigo, e disse:
- Companheiro Sócrates, agora me lembro, não estavas em Paris?
- Eh. Calma aí. Esse usurpou-me o nome. E fala baixo.
- Porquê?
- Porque por aqui a memória é curta. Se me confundem com o outro, ainda me chamam a governar.
- BANDIDO!
- GATUNO!
Só tu para me fazeresir a esta hora da noite cheia de sono
ResponderEliminarJá não sei se hei de rir ou chorar. Obrigado por comentar cara anónima.
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