sábado, 8 de setembro de 2012

DO BANQUETE À TOURADA

Sócrates e Aristófanes deixaram a orgia de Agaton, logo cedo pela madrugada. Um pouco tocados, não tiveram outro remédio que não fosse ampararem-se um ao outro, quando não estatelavam-se os dois e partiam o nariz de encontro ao duro negro do asfalto da estrada, e lá se ia o belo perfil que faz as delícias nos louvres do mundo civilizado. A dada altura, um pouco cansados, sentaram-se ao fresco dos plátanos, por alturas do Campo Pequeno. Agaton vivia numa penthouse ali para os lados da cidade universitária e em breve os dois amigos se separariam uma vez que Sócrates habitava um apartamento cedido pela Câmara na Graça e Aristófanes partilhava três assoalhadas com dois erasmus numa travessa esquecida entre o São Carlos e o São Luiz, dois santos muito dados à comédia e à tragédia como se sabe. Foi quando Aristófanes disse:
-       Vens logo à manif?
-       Que manif.
-       Contra as touradas.
-       Mas o que tens contra os toiros?
-       Contra os toiros, nada. Tenho é contra quem gosta delas.
-       É o teu direito, e o que vinha eu fazer?
-       Não achas que gostar de touradas é um retrocesso civilizacional?
-       Um retrocesso civilizacional? Como assim?
-       Então, gozar num espectáculo em que se massacram animais não é um retrocesso civilizacional?
-       Talvez, embora não veja como é que algo que sempre existiu de repente passa a ser um retrocesso – por esta altura Sócrates pensava numa desculpa para dar a Xantipa por chegar àquela hora da manhã, enquanto Aristófanes retorcia os neurónios para tentar perceber aquilo do retrocesso.
Sócrates arrotava o vinho alentejano que bebera em demasia quando Aristófanes lhe atirou:
-       Mas hás de convir (repararam que não pus o tracinho conforme manda o acordo?... Peço desculpa, continue por favor)… hás de convir que agarrar num pau com um ferro e espetá-lo nas costas de um bicho é pouco civilizado.
-       Achas? No entanto hás de também concordar que quando o macaco do teu avô se pôs em dois pés, pegou num pau e fez dele uma arma de morte, iniciou o que tu chamas de civilização!
-       Caim…
-       Magoaste-te, tofu? – Aristófanes era assim conhecido pelos amigos mais íntimos, e Sócrates fazia questão de realçar a intimidade com aquele petit nom, o que deixava o comediante muito lisonjeado.
-       Não, não me magoei, porquê?
-       Ouvi-te ganir…
-       Eu disse Caim. Falaste num pau para matar, lembrei-me de Caim. Fiz mal?
-       Ah, Caim! Não, não fizeste mal. Sabes que essas histórias dos judeus não são bem a minha onda, mas se elas dizem que Caim simboliza o início da civilização, não serei eu a contrariar. Como vês, parece que não vais bem por esse caminho da civilização…
-       E se em vez da arma fosse, sei lá, o escopro do escultor, o pincel do pintor ou a pena de quem escreve?
-       Fosse o quê?
-       Quando o macaco do teu avô decidiu iniciar a civilização…
-       Agora insultas-me?
-       Foste tu que começaste.
-       Tens razão. Faço-te a vontade. De facto a arte é factor civilizacional, mas olha que não raras vezes serviu para a exaltação da guerra, da morte, enfim, da violência.
-       Habituado que estás a apanhar de Xantipa, já não dizes coisa com coisa, caro Sócrates…
-       Mas repara, não foi Homero quem exaltou as virtudes da guerra na Ilíada!
-       Estava cego!
-       Mas não o estavam Picasso, Hemingway, Lorca, e fartaram-se de exaltar as virtudes da tourada! E a propósito, não eram eles lá das esquerdas de que tu tanto gostas?
-       Eram, e depois?
-       E depois, não me vais dizer que esses monstros da arte representaram um retrocesso civilizacional, pois não?
-       Não me atreveria a tanto, mas olha que não os entendo.
-       Mas entende a arte, que não é mais que a representação do símbolo. E o símbolo representa o mito. Por isso a tourada é o ritual de um mito. Concordas comigo quando digo que o rito é a dramatização do mito através do símbolo, que neste caso é o toiro.
-       Mas porquê o toiro?
-       O toiro representa a natureza bruta que é preciso vencer para bem da civilização. É um monstro, meio homem meio toiro que Teseu mata no labirinto de Creta. Numa sociedade tradicional o símbolo tem importância sagrada, enquanto numa sociedade profana o símbolo morre, e temo bem que com ele morre a nossa civilização. Por isso não fales de retrocesso mas antes de morte da civilização que tu e eu ajudámos a criar.
-       Que será substituída por outra mais justa, mais solidária, mais…
-       Se tu o dizes.
-       Digo porque me custa ver a violência.
-       O mundo é violento. Conheces maior violência que a que se inflige a um ser que sai do útero de sua mãe para ver a luz do mundo?
-       Será por isso que a malta lá da manif também defenda que não há mal em que tal violência seja evitada?
-       O que dizes?
-       Nada, esquece. Espera aí que preciso atender o telemóvel… tou!?
Sócrates olhou Aristófanes que atendia o aparelhozinho infernal feito à custa da violência da escravatura infantil. Era um excelente comediante, pensou, mas incapaz de perceber a alegria do triunfo daquele primeiro homem que, com um pau, matou a fera dando início à marcha da civilização. Era incapaz de aceitar uma alegria feita com violência e nem mesmo a reconhecia quando, feliz no seu amor pela natureza, regava o bonsai de carvalho a quem violentamente impediram de crescer por razões estéticas. Bocejou, talvez fosse fome mas não pensou muito no assunto pois tofu desligara o aparelho e disse-lhe:
-       Bolas, já não vou à manif.
-       Então porquê?
-       A Paula, a do café, lembras-te? Aquela que tem tudo no sítio certo!? – e dizendo isto, fez um gesto com as mãos descrevendo as formas do violoncelo, vício que adquirira pelo contacto próximo do São Carlos  -  Não pode ir. Morreu-lhe o peixinho do aquário. Está de rastos, coitada.
-       Tenho fome…
-       E se fossemos até à roulote? Servem uns couratos e umas bifanas de estalo.
-       E Xantipa?
-       Xantipa que espere.

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