Jan Morris, no seu livro sobre Veneza, conta a
história de um senador veneziano que aproximando-se de um visitante inglês na
basílica de São Marcos, quando a congregação se inclinava em profunda adoração ao
Santíssimo exposto, amavelmente lhe pediu que se ajoelhasse. O inglês
respondeu-lhe que não o fazia porque não acreditava na transubstanciação, ao
que o senador lhe disse: “- Nem eu, mas o
senhor ou se ajoelha ou sai já desta igreja!”. É assim Alfama em dia de
Santo António: ou se comemora o santo, acreditando-se ou não nos seus milagres,
ou se abandona o lugar.
Porque Alfama, ao contrário de Veneza onde até a
sombra da sua grandeza se arrisca a desaparecer (Wordsworth dixit), continua
popular como sempre foi e só desaparecerá com o povo que nela habita. Alfama
não se enreda em milagres grandiosos e complicados como a transubstanciação, que
faz a delícia de filósofos e teólogos. Basta-lhe crer que santo António lhe
encontre noivo da mesma forma que lhe encontra a chave da porta que se perdeu.
Alfama é uma curva livre e sensual ao longo da encosta do castelo que se
debruça sobre o rio, apanhando o sol à varanda de Santo Estêvão e descendo de
pé descalço os pátios e largos de São Miguel, numa graça de mulher.
As casas são pequenas, mal cabe a família, mas quem
tem ruas por jardim, varandas de fresco como Santo Estêvão, arcos de ruelas por
janelas de ver o rio e pátios para conversar com os vizinhos, receber visitas e
vigiar as filhas namoradeiras, não precisa de salões.
Niemeyer, que gostava de curvas, construiu, no
entanto, um pesadelo autoritário e tirânico chamado Brasília e Corbusier,
obcecado pelo espaço livre, desenhou pátios e terraços onde nem os gatos
arranjam tempo para os cantares do cio. É o povo que faz a cidade. Todo o
estudante de urbanismo devia visitar por duas vezes Alfama: a primeira para
estudar o desenho das suas ruas e largos, e as linhas de vista por onde se
adivinha o mundo, porque se vê o Tejo. A segunda, em noite de Santo António,
para ver como o povo usa a rua, o pátio e o largo, deixando a casa para a única
tarefa que lhe compete: abrigo para dormir.
Em época de eleições autárquicas, o mesmo conselho
dou a todo e qualquer candidato. Devia mesmo ser prova obrigatória para
ocupação de cargo autárquico. Porque não basta o bom desenho urbano de Alfama
construída por arquitecto desconhecido. O povo que a habita é essencial para a
sua sobrevivência: a avó que vigia, o neto que corre a ver o rio, o canário que
canta à janela, o gato que se espraia ao sol, o cão que lambe as chagas, a
mulher e o homem que regressam no fim da jornada de trabalho.
Alfama reabilitada para estudantes, yuppies, ou
poetas melancólicos, não será Alfama, e parque temático para turistas; Óbidos chega
e sobra.
Sem comentários:
Enviar um comentário