sábado, 15 de junho de 2013

SANTO ANTÓNIO, ALFAMA E AUTÁRQUICAS

 
Jan Morris, no seu livro sobre Veneza, conta a história de um senador veneziano que aproximando-se de um visitante inglês na basílica de São Marcos, quando a congregação se inclinava em profunda adoração ao Santíssimo exposto, amavelmente lhe pediu que se ajoelhasse. O inglês respondeu-lhe que não o fazia porque não acreditava na transubstanciação, ao que o senador lhe disse: “- Nem eu, mas o senhor ou se ajoelha ou sai já desta igreja!”. É assim Alfama em dia de Santo António: ou se comemora o santo, acreditando-se ou não nos seus milagres, ou se abandona o lugar.
Porque Alfama, ao contrário de Veneza onde até a sombra da sua grandeza se arrisca a desaparecer (Wordsworth dixit), continua popular como sempre foi e só desaparecerá com o povo que nela habita. Alfama não se enreda em milagres grandiosos e complicados como a transubstanciação, que faz a delícia de filósofos e teólogos. Basta-lhe crer que santo António lhe encontre noivo da mesma forma que lhe encontra a chave da porta que se perdeu. Alfama é uma curva livre e sensual ao longo da encosta do castelo que se debruça sobre o rio, apanhando o sol à varanda de Santo Estêvão e descendo de pé descalço os pátios e largos de São Miguel, numa graça de mulher.
As casas são pequenas, mal cabe a família, mas quem tem ruas por jardim, varandas de fresco como Santo Estêvão, arcos de ruelas por janelas de ver o rio e pátios para conversar com os vizinhos, receber visitas e vigiar as filhas namoradeiras, não precisa de salões.
Niemeyer, que gostava de curvas, construiu, no entanto, um pesadelo autoritário e tirânico chamado Brasília e Corbusier, obcecado pelo espaço livre, desenhou pátios e terraços onde nem os gatos arranjam tempo para os cantares do cio. É o povo que faz a cidade. Todo o estudante de urbanismo devia visitar por duas vezes Alfama: a primeira para estudar o desenho das suas ruas e largos, e as linhas de vista por onde se adivinha o mundo, porque se vê o Tejo. A segunda, em noite de Santo António, para ver como o povo usa a rua, o pátio e o largo, deixando a casa para a única tarefa que lhe compete: abrigo para dormir.
Em época de eleições autárquicas, o mesmo conselho dou a todo e qualquer candidato. Devia mesmo ser prova obrigatória para ocupação de cargo autárquico. Porque não basta o bom desenho urbano de Alfama construída por arquitecto desconhecido. O povo que a habita é essencial para a sua sobrevivência: a avó que vigia, o neto que corre a ver o rio, o canário que canta à janela, o gato que se espraia ao sol, o cão que lambe as chagas, a mulher e o homem que regressam no fim da jornada de trabalho.
Alfama reabilitada para estudantes, yuppies, ou poetas melancólicos, não será Alfama, e parque temático para turistas; Óbidos chega e sobra.



Sem comentários:

Enviar um comentário