segunda-feira, 18 de abril de 2016

O ESPECTÁCULO GROTESCO DE UMA DEMOCRACIA


O jantar de Domingo começou com a votação do impeachment a Dilma Rousseff. Quando larguei a televisão já era madrugada de segunda-feira. Assisti porque o que se passava diante dos olhos era um exercício ao mesmo tempo fascinante e grotesco. A realidade que ali passava diante dos olhos não era o que julgava ser o funcionamento da casa da democracia. Diante de todos pudemos descobrir, em directo, um Brasil saído das profundezas que pensávamos existir somente nas telenovelas a que nos habituámos a ver: Gabriela, O Bem Amado, Roque Santeiro… Foi um desfile de Odorico Bastos, Sinhozinho Malta, Florindo Abelha, viúva Porcina...
Para que conste, não nutro qualquer simpatia por Dilma Rousseff ou por Lula da Silva. A arrogância, o desprezo com que nos trataram, demonstrando um provincianismo bacoco, a ignorância e a falta de sentido de estado, desagradam-me. Mas como muito bem lembraram alguns deputados a favor do impeachment, apesar de tudo, o que estava em causa era o julgamento político de um suposto crime da presidente e não a sua política governamental, que para isso não tinham competência. Não me ficaram dúvidas, no entanto, que o voto foi muito mais contra as políticas governamentais de Dilma do que contra o suposto crime praticado ou não. Como foi declarado, de forma grandiloquente e exacerbada pelos deputados, o voto foi contra o comunismo, o vermelho, o ensino do sexo nas escolas, as uniões gay, o suposto ataque à família, o ateísmo, etc..
Quase todos os deputados que votaram a favor do impeachment (e foram mais de 2/3), cientes do efeito televisivo que a sua presença teria na sua terra e famílias, com gestos de fazer inveja a um shakespereano Marco António (venho para sepultar César, não para elogiá-lo…), falaram em nome de Deus, em nome dos pais, das mães, das esposas, dos filhos (houve mesmo um que voltou ao microfone, muito tempo depois de votar, porque se tinha esquecido de nomear um dos filhos), das tias (a sério), dos avós, da Nª Srª da Nazaré, dos filhos por nascer, das suas cidades, do seu estado, da corporação da sua profissão, dos seus eleitores, do povo Evangélico, pelo REINO DE ISRAEL e pela cidade santa de JERUSALÉM!!! (nenhum se atreveu, no entanto, a citar as amantes ou os amantes, para bem dos costumes).
“BEM-AVENTURADA É A NAÇÃO CUJO DEUS É O SENHOR! EU VOTO SIM”. E citando o Salmo 33, gritavam o seu voto, enquanto eu me afundava no sofá receando a ira divina.
Alguns, imitando João Soares, chegaram mesmo a afirmar qual seria o sentido de voto de alguns ausentes e falecidos. Uma deputada começou a defender Dilma e acabou votando Sim. O presidente da mesa sorriu dando-se conta do erro? A ser engano era-lhe favorável, siga a votação!
De outros deputados chegámos mesmo a saber o nome de toda a sua família e árvore genealógica que não chegava ao Manuel e à Maria de uma aldeia remota do Minho, ao cacique Tupiniquim ou à rainha Ginga, porque o presidente da mesa atalhava a tempo.
Um deputado pelo Não, com ironia, disse pensar que vinha para uma reunião política e afinal via-se no meio de pais, de mães, de filhos. Dois deputados, também pelo Não, um deles padre, fizeram questão de lembrar a tão religiosa e extremosa assembleia as violações que tanta invocação e atitude faziam ao 2º, ao 4º e ao 7º mandamentos da Lei de Deus!
Houve de tudo, desde cânticos no momento do voto, a disparos de foguetes de confetis. Um Tiririca comedido, assustado com a concorrência à profissão de palhaço, votou Sim. Um grande aplauso. Outros, mais líricos, falaram em verso. A oratória, a retórica, as artes declamatórias, a gritaria e a festa carnavalesca tiveram rédea solta, ou não estivéssemos no Brasil. Todos eram contra a corrupção apesar de na mesa se sentarem acusados da mesma córrupêção (como tanto se ouviu). Os que votaram Não, sem medo e cara a cara, acusaram o presidente da mesa de ladrão, corrupto, gangster, canalha, criminoso, covarde… “A sua hora chegará, Eduardo Cunha.” Ouvia-se gritar.
Os que votaram sim ao impeachment, sabendo da força da televisão, distribuíram-se na sala para que fossem vistos e ouvidos. Primeiro por detrás da mesa da presidência com cartazes e faixas, depois em redor do microfone onde se fazia a votação, tapando com os cartazes os que diziam Não, para que em casa os não víssemos. Ali, junto ao microfone, por vezes, chegaram a intimidar, ou pretenderam intimidar quem votava Não. Foi feio de ver o que era suposto ser uma sessão de debate político transformado num espectáculo triste. Apesar de tudo, convenhamos, o nível já tinha baixado com Lula e Dilma.
A democracia é o pior regime com excepção de todos os outros, dizia Churchill que sabia bem dos perigos que este sistema comporta e da necessidade de criar mecanismos de controlo das suas deficiências, e eu dei por mim a pensar no despotismo esclarecido de Frederico II da Prússia, amigo e companheiro de Voltaire…
A minha opinião a favor do presidencialismo foi ferida de morte nesta noite em que assisti a este espectáculo grotesco de uma certa democracia, num país que gostamos de pensar ser a parte boa de Portugal, como já ouvi alguém dizer.

Num sítio onde todos se tratam por Vossa Excelência, não sobrou excelência nenhuma. Como tanto se ouviu nesta noite, eu repito: “Que Deus tenha misericórdia…”

4 comentários:

  1. Assisti apenas a alguns minutos e, de facto, grotesco é a palavra que melhor descreve aquele inacreditável espectáculo! Obrigado pelo texto, completa o pouco que, incredulamente, vi.

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    1. Foi-me impossível deixar de ver. Estava fascinado, pela negativa.

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  2. Só vi uma amostra da arena e pelo que vi e ouvi, também só me resta dizer "Que Deus tenha misericórdia...".

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    1. Eu fiquei de tal maneira fascinado, pela negativa, que não pude deixar de ver até ao momento decisivo. Foi mesmo muito mau. Não pelo resultado da votação, mas pela forma como tudo aquilo correu, a hipocrisia de tanto corrupto clamando contra a corrupção e invocando o nome de Deus em vão. Diria que foi mesmo uma blasfémia.

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