Quero
dizer, o bacalhau, toda a gente sabe, navega ali junto ao Ártico pelo Atlântico
Norte embora tenha primos no Pacífico, mas ninguém sabe porque chamamos
bacalhau ao bacalhau. Os italianos chamam-lhe bacalà, só com um l, e os catalães
acrescentam-lhe mais um l. Para os espanhóis é bacalao e para os croatas
bakalar. Os gregos, que estão na moda, dizem bakaliáros e os russos labardan o
que não fica nada bem. Dizem que os culpados do nome são os bascos que lhe
chamam bakailao mas a verdade é que os indígenas da Terra Nova já usavam o
termo bacal quando o italiano John Cabot ali chegou em 1497. Aquelas gentes do
Norte já o secavam ao ar permitindo assim conservá-lo para as longas viagens
que faziam, mas foram os povos do Sul que levaram o sal, que aquela gente não
conhecia apesar de viverem afogados em água salgada. Dizem que foram os
italianos que primeiro o fizeram só porque um mercador veneziano, Pietro
Querini, se fez naufragar junto à costa da Noruega, ainda antes da descoberta
da Terra Nova, passando a comer o peixe que os indígenas que o socorreram lhe
ofereciam. Resolveu o veneziano comerciá-lo para Itália iniciando assim a salga
do fiel amigo. Quando Cabot chegou à Terra Nova e os irmãos Corte-Real procuravam
a passagem do Norte, os portugueses foram para ali pescar fazendo o mesmo:
secando e salgando o bacalhau. A coragem e o sacrífico dos nossos pescadores, a
quaresma e o interdito de carne à sexta-feira e véspera de Natal, transformaram
o Gadus morhua, que é o verdadeiro
bacalhau, no fiel amigo das mesas portuguesas vai para mais de quinhentos anos.
E
é a Quaresma o momento ideal para aqui deixar a receita que o avô dos meus filhos
faz quando reúne a família na Guarda. Depois de demolhadas as postas dá-lhes um
apertão em leite a ferver. Às batatas descascadas e cortadas aos quartos faz o
mesmo mas com água a ferver até quase cozê-las. A seguir cobre uma travessa de
ir ao forno com rodelas de cebola e bacon cortado aos bocados, que têm os
portugueses a esperança secreta de que Deus ande distraído e não descubra o
porco amancebado com o bacalhau entre a cama de batatas e cebola. Depois de
escorridas as postas, banha-as em ovo inteiro batido, seca-as com pão ralado e leva-as
a deitar na cama de cebolas e bacon aconchegando com as batatas meio cozidas. Rega
tudo com azeite ou óleo de forma a chegar até ao fundo da travessa. Rega também
com vinho branco ou cerveja fazendo figas para que Deus, Nosso Senhor, se
distraia de novo, e acrescenta nozinhas de manteiga. Leva ao forno até acabar
de cozer as batatas e corar o bacalhau, e os netos fazem o resto!
É
a Noruega a pátria do bacalhau, por isso deixo-vos com a música do seu mais
famoso compositor: Edvard Grieg que, por ser filho de um comerciante do famoso peixe, dizia que a sua música sabia a bacalhau.
Aqui há tempos alguém,
incrédulo pelo facto de eu afirmar não gostar de André Rieu, lançou-me o
desafio de explicar porque não gosto daquele que é o músico mais bem pago. Vou
tentar.
Os que me conhecem
sabem que gosto de música, e de entre os vários géneros de que gosto a chamada “clássica”
é a minha favorita. Gostar de música como a mais nobre das artes podia ser a
única explicação porque não gosto de André Rieu. O que ele faz é
entretenimento, e para isso não se importa de decepar e violentar uma obra de arte.
Pior, embrulha tudo aquilo muito bem embrulhado e oferece à audiência
fazendo-lhe crer que aquilo é a obra de arte tal qual o artista a criou.
Quando há uns anos um
louco decidiu partir o nariz da Nossa Senhora da Pietá do Miguel Ângelo, o
mundo horrorizou-se. Por que razão não me hei-de horrorizar quando oiço
assassinar o Coral da Nona Sinfonia de Beethoven como fui obrigado a ouvir,
perpetrado pelo André Rieu? Este não só parte o nariz como ainda põe luzinhas em
volta a piscar…
Nada tenho contra o entretenimento
e a música pode sê-lo. O que não deve ser é unicamente entretenimento. Muito da
sua audiência julga estar na presença de uma grande orquestra e de um grande
maestro, tal a propaganda que é feita e o dinheiro que ganha. Melhor que aquilo
ouvimos em qualquer sala de concertos do país, sem precisarmos de lá ir fora.
Não tem é aquele aparato, nem amplificação, nem a mascarada dos músicos. Dei-me
ao trabalho de ouvi-lo (acreditem que me foi doloroso). O homem não sabe
dirigir. Os gestos que faz são uma farsa. Os músicos são realmente excelentes e
sabem o que devem fazer para não terem de aturar aqueles gestos patetas. A
música que se ouve tem pouca tensão. São medleys das melhores melodias para
encher o ouvido e todo aquele circo é para distrair. De lágrima fácil, sem
virilidade nos fortissimi e sem
sensibilidade feminina nos pianissimi.
Só lamechice. Não gosto.
Acho piada quando um
grupo de músicos brinca com a chamada música clássica. É preciso saber muito da
música que se toca para brincarmos com ela. Não se impinge como se fosse a obra
original, e se conhecermos a peça achamos graça porque percebemos onde está a
piada. É entretenimento e também gosto. Mas sobretudo gosto das emoções que a
música transporta em si. Sem artefactos de encher o olho. Quando a oiço gosto
de visualizar todas as emoções, ambientes e cores que ela transporta. Se me dão
a ver cenários, roupagens, etc, impedem-me o exercício de visualizar (mesmo na
ópera, cenário a mais estraga). É-me dado de bandeja não exigindo de mim qualquer
esforço de compreensão. Não é o que procuro na música.
Quero ouvir o que o
compositor criou. De me zangar quando discordo da interpretação que um músico
dá a uma ou outra passagem, e gosto de me maravilhar quando sou surpreendido por
um novo matiz que descubro num trecho que julgava conhecer muito bem. Nada
disso se encontra em Rieu. Aquilo soa sempre tudo ao mesmo. Como um licor onde
o gosto do açúcar apaga todos os outros sabores.
Imaginem um bom jogo de
futebol: Real Madrid versus Barcelona. Vocês vão até ao estádio para ver o
Messi e o Ronaldo competindo um contra o outro. Sabem que se vão zangar quando
o Ronaldo falhar aquele lance que parecia tão fácil, e vão ficar à beira de um
ataque de nervos quando o Messi tocar a bola para a frente. Por vezes, se o
jogo empastelar, até se vão aborrecer. Se houver golos será espectacular, mas
se os não houver, saem de lá com a certeza de terem assistido a um bom jogo de
futebol. Agora imaginem que chegam lá e não há jogo nenhum. Os treinadores põem
o Messi e o Ronaldo a fazerem remates à baliza, à vez, durante todo o tempo de
jogo, e enquanto trocam de lugar um grupo de cheerleaders dança no centro do estádio. Ao princípio até acham
piada, mas passado um bocado aborrecem-se: a emoção do jogo desapareceu. A
emoção dos dribles, da zanga com o árbitro, dos empurrões, da táctica e da
estratégia, para ficar unicamente o encantamento dos golos, e nem as pernas
bonitas das moças consolam da desilusão de não ver as dos jogadores. André Rieu
está para a música como um resumo de golos está para um jogo de bola. É giro,
mas não é futebol.
A
seguir aconselho-vos a ouvir aquela que é considerada, talvez, como a melhor
obra musical alguma vez escrita: a abertura da Paixão de S. Mateus de Bach. Trago-vos
uma interpretação de referência protagonizada pelo maestro Karl Richter.
Pessoalmente gosto de um andamento mais rápido, como o do maestro Harnoncourt e
há dias fiquei maravilhado com a interpretação de Ivan Fischer no Mezzo. É como
no futebol: uns gostam mais do Messi e outros do Ronaldo, mas são ambos muito
bons. Interpretam o que está na partitura sem a beliscar.
Foi composta
para ser interpretada no interior de uma igreja luterana, despida de
ornamentos. Só música. Duas orquestras em competição, como no futebol, e mais
dois coros. E depois um terceiro: um coro infantil. Ao início as orquestras
tocam juntas, em uníssono, com os sopros a dialogar entre si. Vejam se
conseguem ouvir em fundo o ritmo do baixo-contínuo, aquele som grave que se
ouve “por baixo” de toda a música (sem boas colunas é difícil). Será a evocação
do caminhar doloroso de Cristo com a cruz às costas? Depois entra um coro a
lamentar-se para logo o outro coro perguntar o que se passa. E os dois coros
dialogam entre si. Um pergunta, o outro responde. Como uma multidão que se
atropela no caminho do calvário. No meio da música surgem então as vozes
infantis. Brancas, sem harmónicos como julgamos ser as vozes dos anjos. Os
meninos exclamam: “Oh inocente Cordeiro de Deus…”
E
pasme-se perante a modernidade de Bach (início do século XVIII). A música
tocada e cantada pelas orquestras e coros está escrita em tom menor, triste e
lamentoso, mas os meninos cantam em tom maior, afirmativo e luminoso, como é
próprio dos anjos que refletem o olhar de Deus. Uma quase bitonalidade criando
enorme tensão. Depois os coros parecem que se perdem, trocando as orquestras
entre si. No fim, com todos de acordo, a peça termina, como é próprio do
barroco, num belo acorde em tom maior, brilhante e luminoso, porque apesar do
lamento e do sofrimento há a esperança na salvação.
Sem
crinolinas e sem rendas. Tudo a preto e branco para não ofuscar a paleta de
cores e o bordado que estão na música. Façam um esforço para a ouvir até ao fim.
O compositor fez o seu trabalho e o ouvinte terá de fazer o seu. A emoção que
ela transporta não vem de bandeja, é preciso entrega da vossa parte. Quem
quiser jogar futebol tem de esfolar as canelas. Não há concessões. Essas ficam
para André Rieu.
Se está a pensar
celebrar o dia dos namorados com uma ida ao cinema para ver o pastel que se
intitula “As cinquenta sombras de Grey” desista. Parece que aquilo não aquece
nem arrefece.
Sempre me fez impressão
ver gente trocar um bom copo de vinho tinto por um “panaché”. Se compreendíamos
a corrida a filmes como a “Piscina”, o “Último Tango em Paris”, ou o Pato com
Laranja” pela vergonha de levar a esposa a um antro de filmes pornográficos,
nos tempos de hoje, em que podemos vê-los no recato do lar, faz-me confusão que
as senhoras corram a ver um filme em que o único mérito é ver o galã mostrar
alguns pêlos púbicos e as “nalgas”. A sério. É tudo o que verão no tal
filmezinho.
Se acham a actual
pornografia mau cinema, porque não experimentam os velhos clássicos de
antigamente? “A historia d’O”, “Por detrás da Porta Verde”, “O Diabo em Mrs
Jones”, e por aí fora. Pornográficos quanto baste mas muito bem filmados.
Na literatura é o
mesmo. Porque ler um mau livro como as sombras do dito cujo, quando se pode ler
a bela escrita de Guillaume d’Apolinaire no seu famoso livro “As onze mil varas”?
Ou a “Justine” do Marquês de Sade? Ou “Therése, a filósofa” de um anónimo do século
XVIII? E se não gostam dos clássicos, leiam “A casa dos Budas Ditosos” do brasileiro
João Ubaldo Ribeiro. Tudo muito bem escrito e com sexo a transbordar da
contracapa a ponto de fazer corar o jovem Grey.
Mas não há nada melhor
do que ser você a fazer a sua própria literatura e o próprio cinema. Em boa
companhia, evidentemente. Deixe as sombras de Grey para quem não pode!
Corria
o ano de 1958 quando, no estado americano da Virgínia, três agentes da
autoridade irromperam no quarto onde dormia um casal de recém-casados. Foram
presos e condenados porque a noiva era negra e o noivo branco: Mildred e
Richard Loving.
Felizmente hoje já não é
possível ser-se preso por casamento, namoro ou sexo interracial. Um homem negro
ou branco pode ter relações sexuais, namorar e casar com uma mulher negra ou
branca, ou mesmo com outro homem, negro ou branco. Pelo menos no chamado mundo
ocidental. Mas desenganem-se os que pensam que podem cantar vitória à liberdade
e ao amor livre tão aclamado pelo Maio de 68. É que o mundo dá-se mal com a
liberdade e, 56 anos depois do drama de Mildred e Richard, as universidades
americanas, e de entre elas a prestigiada Harvard, decidiram proibir os namoros
entre funcionários e alunos, todos adultos capazes de votar e serem eleitos.
Pergunto-me como
reagirão professores e alunos de Filosofia e Literatura ao lerem as cartas de
Abelardo e Heloísa escritas há 860 anos. Pergunto-me porque não se incendiaram
já aqueles verdes campus onde a
rebeldia devia andar à solta? Como se esqueceram já do famoso slogan de Maio de 68: é proibido
proibir?
Diz o Papa Francisco que não faz mal dar umas palmadas aos filhos.
Talvez tenha razão. À força de tanta moleza da mão dos pais, desabituaram-se os
jovens à rebeldia que devia ser própria da idade.