sábado, 16 de novembro de 2013

SARAMAGO, NO SEU ANIVERSÁRIO

 
Saramago faz hoje anos. Há quem o deteste e quem o adore. De Saramago gosto mais do artesão que é das letras portuguesas do que do homem que nos quer contar uma história. No Memorial do Convento, contudo, adorei o artesão e o contador de histórias.
          Gosto do Saramago escritor pela força das suas metáforas, mas o homem que foi obnubilou o que escreveu. Nem todos os grandes escritores foram pessoas recomendáveis, Céline é um exemplo, mas interrogavam mais do que afirmavam, e assim impediam o contágio entre o homem e o escritor.
          Não me choca o Saramago iconoclasta mas confesso que nunca lhe achei grande jeito para essa aventura. Para deicida era demasiado pueril. É certo que este é o tempo de um Richard Dawkins e não de um Nietzsche, e por isso falta espessura à época.
          Saramago, por exemplo, na sua ânsia de falar de Deus nunca se atreveu a declará-Lo morto, preferindo denegri-Lo. Esquecia-se do óbvio, e em vez de falar das lutas e angústias dos homens que inventaram deus, falava mal do deus inventado. Se Deus foi inventado pelos homens, nas palavras de Saramago, e sendo esse Deus cruel, como muitas vezes o demonstra o antigo testamento, isso só significa que os homens, cruéis, inventaram um deus à sua imagem e semelhança. Falando mal desse deus, Saramago esqueceu-se que afinal falava mal dos homens.
           Ao tentar atacar Deus, com tanto relato por escolher, falhou completamente o flanco quando usou Caim e o livro do Génesis, um dos livros mais maravilhosos sobre a aventura do Homem. Atentamos então nesse capítulo 4 de um livro que os homens inventaram e vejamos o que esses homens nos quiseram dizer e que Saramago quis usar.
          Todos conhecemos o conto que nos diz que Caim, o primogénito de Adão e Eva, fez uma oferta dos frutos da terra que desagradou a Deus, e que Abel ofertou cordeiros gordos e suculentos do seu rebanho para muito agrado do mesmo Deus. Caim não gostou da falta de isenção de Deus e matou Abel que, ainda não disse, era irmão de Caim, também filho de Adão e Eva porque a curva de Malthus começava então o seu caminho. Isto é o que em regra todos sabem mas esperaria que Saramago soubesse um pouco mais. Soubesse por exemplo que Deus, inventado ou não, dando pela falta de Abel e encontrando Caim lhe perguntou:
-       Onde está o teu irmão Abel?
…e que Caim se apressou a responder com outra pergunta, como em regra fazem quem tem algo a esconder:
-      Sou, por ventura, guarda do meu irmão?
           E quem era então Abel, irmão de Caim? E porquê que os seus sacrifícios caíam no goto do Senhor? Saramago tinha obrigação de saber, mas não o demonstrou.
           Abel tinha como meio de subsistência o gado que crescia de acordo com a vontade da natureza e que se criava nos pastos verdes regados pelas gotas do orvalho das manhãs. Por isso Abel, que não possuía a terra, agradecia com o coração, como dizia santo Agostinho, a dádiva da natureza. Abel era o proto chefe índio Seattle, que a ONU transformou num ícone da defesa do ambiente (…a terra não pertence ao homem; o homem pertence à terra…). Era assim a modos que membro honorário do partido dos verdes que o partido comunista gosta de levar à ilharga, mas Saramago não viu isso.
           E Caim, que se recusou a ser guarda de Abel para se tornar no seu assassino, quem era?
           Um fazendeiro. O homem que julga possuir a terra de onde tira o alimento. O homem que fundou uma cidade e cujos filhos fabricaram todos os instrumentos de cobre e ferro e as armas que matam (Gn 4, 17.22). É o grande proprietário que cria assalariados e deixa morrer à fome o irmão que não produz, porque não se julga guarda do seu irmão. O homem para quem tudo tem um preço e por isso a sua oferta não agradou. Em suma, é o burguês capitalista, mas Saramago não viu isso.
            Saramago não viu a história do Homem, das suas lutas, ambições e frustrações e o caminho que o conto apontava como do agrado de Deus: a solidariedade entre todos, como irmãos. O socialismo?!.
            Não viu porque se cegou com o deus inventado. Ao querer culpar Deus, desculpou o capitalista; Saramago, o comunista.
             Saramago escreveu outro grande livro: O ensaio sobre a cegueira. Quem melhor que um cego para escrever sobre a cegueira?

 
 Gravura de autor desconhecido, existente na Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos da América.

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