Dedicado ao comentador de
economia, Camilo Lourenço, que disse, em nome da eficácia e da eficiência, não
ser necessário que as universidades dessem cursos de história.
Obrigado a contragosto a proceder a avaliações de
acordo com os modernos critérios da boa gestão, consegui aprender entre dois
bocejos que a eficácia é tanto maior quanto melhor se atinge um objectivo e a
eficiência está na razão inversa dos meios utilizados para chegar ao mesmo
objectivo.
Influenciado pelos tudólogos que todos os dias nos entram em casa pela tv, conhecedores
de tudo e de coisa nenhuma, que nos tentam ensinar como sair da crise quando
teria sido bem melhor que nos tivessem ensinado a não entrar nela, resolvi, em
nome da eficácia e da eficiência a que esta crise nos obriga, fazer a avaliação
de dois trechos musicais.
Assim, se entendermos que um trecho musical tem como
objectivo atingir a parte mais sensível da alma humana, coisa que os filisteus
afirmam estar entre o estômago e o coração, comprovado pelo facto de quando a
parte sensível da alma se estica sentimos um nó no estômago e um aperto no
coração, podemos então classificá-lo de acordo com aqueles critérios.
Escolhi para a experiência dois conhecidos temas
musicais: a Ave Maria de Gounod e a celebérrima nona sinfonia de Beethoven, ou
mais concretamente a “Ode à Alegria”. As
conclusões são assustadoramente estranhas.
Quando o senhor Carlos Gounod ouviu pela janela o
prelúdio em dó maior de Bach, que um músico de rua, acompanhado de um macaco,
fazia soar dando à manivela de um realejo, lembrou-se de se pôr a meditar no
assunto e desenhou, sobre a estrutura rítmica e harmónica do prelúdio, uma
linha melódica simples que tocasse a parte mais sensível da alma humana. O
objectivo foi integralmente cumprido.
Se é casamento lá estão a mãe da noiva e as tias a
comprovarem-no, ensopando quantos lenços de papel conseguem encontrar e a dona
Maria fica especialmente comovida quando a cantora grita - MARRÍA, MARRÍA, porque lhe faz lembrar a patroa. Se é funeral até o
pior inimigo do defunto decide atirar uma mão cheia de terra sobre o féretro ao
ouvir o in hora mortis nostrae.
É peça de eficácia garantidíssima e, como dona
Constança, não há festa nem festança onde não esteja. No México é obrigatória
na missa de quinceañera de qualquer
menina que se preze e é sucesso garantido num encontro amoroso onde, por pudor,
se deve trocar a cantora ou cantor por um violinista, húngaro de preferência.
Se a troca for por moça ou moço de ar angelical com uma flauta nos beiços, pode
então ser ouvida por protestantes, hindus, muçulmanos, budistas ou ateus. Como
prece à virgem é de efeito garantido antes e depois de uma avaliação da troika.
É, portanto, de uma eficácia a toda a prova.
Quanto à “Ode à Alegria”, integrada na nona sinfonia,
a que chamam coral por acabar com um
monte de gente aos berros, também tem o seu grau de eficácia garantido para
atingir o objectivo de tocar na parte sensível da alma de qualquer humano mais
obtuso, embora em menor grau do que a Ave Maria do Gounod. É que a nona, ou
mais concretamente o pequeno excerto do seu quarto andamento que constitui a
“Ode à Alegria”, pode ser ouvido em qualquer lado, desde um estádio de futebol
ao parlamento europeu, mas não é costume cantar-se em casamentos embora não
ficasse deslocado num divórcio. Em encontros amorosos também não dá muito jeito
(até para uma orgia é demasiada gente), embora o Alex da Laranja Mecânica
gostasse de fazer sexo ao som do segundo andamento da nona, mas gostos não se
discutem.
Temos portanto as duas obras bem classificadas do
ponto de vista da eficácia. Isto é, têm ambas sucesso para atingir a tal parte
sensível da alma, entre o estômago e o coração.
E quanto à eficiência? O tal critério que avalia os
meios gastos para atingir a eficácia?
Começando pela Ave Maria, é fácil verificar que o
nosso amigo Carlos foi eficientíssimo, senão vejamos: agarrou numa estrutura
musical já existente, e cujo compositor, Bach, já tinha morrido há mais de cem
anos e por isso livre de direitos. Alterou-lhe o tom de dó maior para sol
maior, coisa que qualquer um com um pouco de conhecimento de matemática pode
fazê-lo mesmo não percebendo nada de música, e pôs-lhe em cima uma melodia tão
simples que podia ter sido inventada pelo Tony Carreira. Para a letra não
arranjou nada mais simples do que pegar num pequeno texto da autoria do arcanjo
Gabriel, que por não ter ficha nas finanças não pode cobrar direitos,
acrescentado de um outro saído do concílio de Trento, onde de tão preocupados
com a reforma e contra-reforma se esqueceram de a registar na sociedade de
autores. Simples e barato, cantado em latim para que não se entendesse em parte
nenhuma e já está. A harmonia é tocada por um único instrumento, piano ou
órgão, cujo intérprete tem a obrigação de saber de cor porque é peça
obrigatória no ensino de tecla, e a melodia é cantada por uma única senhora.
Caso não haja senhoras disponíveis pode facilmente ser substituída por um homem
que esteja disposto a arriscar uma ruptura nas virilhas para atingir o si agudo
do in hora, hora, mortis. Mais
eficiente e mais barato que isto não há. Três minutos e meio de música é quanto
basta para se pôr a solteirona mais fria a procurar consolo nos nossos braços.
Quanto à “Ode à Alegria” é pior que a festa do parque
escolar. Para a ouvir é necessário, nada mais, nada menos, do que uma sinfonia
em quatro andamentos com um total de uma hora e dez minutos.
Para o soprar, uma secção de dez madeiras e outra de nove metais,
e para o barulho, quatro percussões. Para o lirismo, temos as cordas: duas
secções de violinos, uma secção de violoncelos e uma secção de contrabaixos. Em
cima disto tudo um coro a quatro vozes mas com o naipe dos tenores a desdobrar
de vez em quando para que soe a cinco (a única poupança…). Por fim um quarteto
de solistas, dois homens e duas mulheres, cujas características principais são
a de gritaram o mais alto que puderem. A gerir esta secretaria de estado um maestro que não sofra de artrite. Um
desperdício enorme de meios: sala apropriada, fotocópias em barda contribuindo
para a destruição da Amazónia, e tempo demais para atingir o objectivo. Para além
do mais o coro e os solistas passam a maior parte do tempo sentados e calados.
A música deu um trabalhão dos diabos ao Ludovico que
matou a cabeça para descobrir como meter um coral numa sinfonia. Depois a
letra: um poema do Schiller, morto há menos de vinte anos, logo com herdeiros a
exigir direitos e escrito numa língua que só uma ínfima parte da humanidade
consegue perceber e articular. E isto tudo para quê? Para levar mais de cinquenta
minutos até atingir a tal eficácia, porque o que a malta quer mesmo é ouvir o tal
excerto do quarto andamento.
A coisa decorre mais ou menos assim: As luzes
apagam-se, o palco ilumina-se, e o pessoal compõe-se nas cadeiras, e é o
primeiro andamento. Alguém olha para a vizinha do lado com ar entendido e finge
ler com muita atenção o programa. No segundo andamento todos acham graça àquele
cavalgar da orquestra, e quem é cinéfilo mostra um sorriso maroto ao lembrar-se
da Laranja Mecânica, mas não tarda estão a bocejar, e quando chega o terceiro
já ponderam se valeu a pena esperar tanto tempo. Finalmente começa o quarto: a
orquestra vai ameaçando, dá um cheirinho do tema e a malta fica expectante. A
música torna a passear-se pelos temas anteriores, e a malta exaspera. Então os
metais e a percussão dão dois acordes estrondosos e a secção grave das cordas
começa a entoar o tal tema. Um burburinho corre pela sala, a malta que
entretanto se afundara pelas cadeiras abaixo iça o corpo para cima e um ouvinte
diz para a esposa: - Agora é que é…-
e a mulher resmunga que já não era sem tempo. O coro e os solistas finalmente
levantam-se, e quando o baixo berra: - O
freunde, sente-se a electricidade no ar. Passado um tempo está tudo aos
berros. A contralto a gritar por cima da soprano, só porque é mais alta, e esta
a sentir-se vingada por mostrar entre o decote, um peito enorme de fazer
inveja; o baixo a pensar - quando é que isto acaba que hoje joga o Benfica, e o
tenor a mostrar aquele ar parvo de quem se sente satisfeito por ali estar.
Acaba tudo numa grande gritaria com a percussão a
fazer muito barulho, os arcos dos violinos a ameaçar enfiarem-se pelo olho do
vizinho do lado, e a contralto a gritar, furiosa por não ter uma medida de
copa adequada.
No fim a assistência pula em apoteose gritando
bravos, aliviada por aquilo ter finalmente acabado, e a tal esposa, preocupada
com a excitação em que vê o marido, vai dizendo, à cautela, que tanta emoção
lhe provocou uma enxaqueca.
Enfim, em termos de eficiência um autêntico desastre.
O desastre é de tal modo que o pessoal, para poupar,
arranjou maneira de fazer aquilo por menos e é ver os coros a cantarem o tema
da “Ode à Alegria” em ritmo de funeral, dispensando a parafernália dos
instrumentos, dos solistas, e dos restantes andamentos. Os miúdos da escola
sopram em flautas de plástico o mesmo tema e ao mesmo ritmo, e os pais babam-se
porque o filho já toca uma sinfonia de Beethoven.
EFICIÊNCIA: Ave Maria de Gounod =10; nona sinfonia =
0
E a qualidade? Bom, a qualidade é muito difícil de
aferir. Digamos simplesmente que a Ave Maria não trouxe nada de novo, não teve
qualquer influência na história da música, a não ser ensinar como plagiar e ser
bem sucedido, enquanto que a nona é considerada a melhor obra da história da música
e teve grande influência na maior parte dos compositores do romantismo.
Toda a gente ficou a saber que Beethoven escreveu
nove sinfonias e a sonata ao luar, e a fur
Elise ouve-se ao telefone quando esperamos que atendam a nossa reclamação.
Toda a gente sabe de cor os primeiros acordes da quinta sinfonia e sabe que
Beethoven ficou surdo e era alemão.
E Gounod? Alguém sabe a sua nacionalidade? Que obras
compôs?
Alguém sabe que, ao contrário de Beethoven que só compôs
uma, Gounod escreveu várias óperas com nomes tão sugestivos como por exemplo;
“A Freira Sangrenta”? Alguém sabe que é o autor do hino do Vaticano? Que teve
uma amante inglesa em pleno período vitoriano? Uma amante vitoriana e inglesa é
capaz de adormecer o mais fogoso, e talvez explique o gosto que Gounod adquiriu
na velhice pela música religiosa, mas não é razão para desconhecermos o facto!
E os próprios compositores o que pensam daquilo que
fizeram?
Gounod detestou saber que só ficou conhecido pela Ave
Maria, e chegou a afirmar que nunca escrevera tal coisa. Bach recebeu-o muito
mal no Paraíso e dizem até que a zanga entre os dois foi responsável pelo
atraso da Primavera. Beethoven, em contrapartida, ficou felicíssimo por ser
conhecido pela sua nona sinfonia.
Conclusão: em nome da eficácia e da eficiência, o
senhor Camilo Lourenço só admitiria o ensino de Gounod e proibiria Beethoven. Um professor de História acrescentaria que se os
persas, na guerra contra os gregos, tivessem sido eficazes e eficientes, talvez
nem Gounod nem Beethoven.
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ResponderEliminarCaro João Alves,
ResponderEliminarTornei-me seguidor do seu blogue e convido-o a pornar-se seguidor do meu, Fanáticos da Ópera / Opera Fanatics, onde acabou fe fazer um ajuizado comentário.
Cumprimentos
Caro Fanático
EliminarSou seguidor do seu blogue desde a primeira hora.
Brilhante orquestração de palavras e ideias, de quem percebe de escrita e sabe daquilo que fala... Quanto ao Camilo, abstenho-me de comentar comentadores... Um abraço e até ao próximo post.
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