A Sua
Santidade o Papa,
Cidade do
Vaticano, Roma
Soube que
escreveu um lindo livro sobre a infância de Jesus e, por isso, quero dar-lhe os
parabéns. Ficou-me no entanto uma profunda mágoa quando me disseram (não li o livro)
que o Santíssimo Padre, talvez contagiado por esta onda de austeridade que a
troika nos tem imposto, decidiu fazer cortes no presépio: que a estrela pode
ficar desde que lhe chamem super nova, que a virgem é intocável, mas que o
burro e a vaquinha vão ter de sair: não constam do registo histórico, diz Vossa
Santidade.
Eu protesto.
Para cortes já chega o do subsídio de Natal, e no presépio ninguém toca. Nem
mesmo Vossa Santidade. É patrono e guardião dos presépios aquele bondoso
rapazinho de Assis, que é Francisco como eu, e o Santíssimo Padre vai-me
perdoar mas estão ainda os santos no Céu acima de Vossa Santidade na Terra.
Pensa o Santíssimo Padre com os seus botões que lhe falo assim porque como não ditou
da cadeira de São Pedro não pode invocar a infalibilidade de Vossa Santidade,
pelo que não temo a excomunhão. E se assim pensa, pensa muito bem, que eu não
sou temerário.
O meu protesto
não é um mero slogan do tipo: FORA A TROIKA, QUEREMOS O PRESÉPIO DE VOLTA, não.
Eu falo de factos, tal como Vossa Santidade. Arriscando-me a que me acusem de
tentar ensinar o Padre Nosso ao Vigário, sempre lhe vou dizendo que tenho
razões e provas que sim senhor, os bichinhos estavam lá. Se o Santíssimo Padre
afirma que nem Mateus nem Lucas o atestam, também lhe digo eu que o não
negaram.
Saiba o
Santíssimo Padre que não sou de mexericos mas sabe o senhor e sei eu que Mateus
era funcionário público e do Natal limitou-se a fazer o registo no cartório,
com genealogia completa. Como gostava de se dar com os grandes deste mundo, não
fosse ele cobrador de impostos, relatou com mais pormenor a visita dos magos do
Oriente, sempre de olho, não fossem fugir ao IVA do ouro, incenso e mirra que
estava pela hora da morte.
Lucas era bom
rapaz, não o nego, mas era médico, com mania das higienes e entendeu por bem
não misturar o gado com o menino por razões do politicamente correcto, não
fosse a ASAE protestar. Mas vamos aos factos.
Diz Lucas que
José e Maria subiram de Nazaré a Belém, a fim de se recensearem (império
romano, burocracia fina e administração cuidada, um mimo). Atente Vossa
Santidade no verbo: subiram! E assim, é.
Deixando
Nazaré em direcção ao Sul, atravessaram o vale de Jezreel e começaram a subir
as colinas da Samaria, com os seus terraços verdejantes de oliveiras, vinhas e
figueiras. Não obstante o medo aos samaritanos, José ofereceu um figo a Maria
que tinha desejos. Mais à frente embasbacaram-se com as colunas alinhadas ao
longo da estrada que leva à magnífica cidade de Sebaste que Herodes mandou
edificar em bajulação a César Augusto. Foi nessa altura que José, indignado,
terá dito: é para isto que vão os nossos
impostos; e Maria suspirou. E assim continuaram por sítios e locais da
história dos judeus, admirando o local onde Jacob sonhou com uma escada que
atingia o Céu e o campo onde se elevara a tenda da Arca da Aliança. Por fim
entraram em Jerusalém, rezaram junto ao seu templo e continuaram até Belém.
Sempre por montes e vales. Sempre em caravana que o mundo era perigoso e ainda
o é mais por aqueles lados. Resumida assim muito resumidinha a viagem de José e
Maria, quer Vossa Santidade fazer-nos crer que José ia obrigar Maria, grávida
do menino, a percorrer aqueles 130 km, por montes e vales, a pé? Sujeito à
crítica dos demais viajantes da caravana? - Olha-me
pr’aquele. Gente fina (sim, porque
José é ou não é descendente do rei David, como escreve Mateus?) e obriga a pobre rapariga, grávida, a viajar
a pé - Não. Nem o Santíssimo Padre, apesar de alemão, consentiria numa
coisa dessas, porque apesar de naquele tempo não terem de esperar horas
intermináveis para passar as infames barreiras que agora vedam a estrada,
sempre foram cinco dias a uma semana de caminhada. Maria houve por força subir
de Nazaré a Belém montada num burro.
E já temos o
burro.
Diz Lucas que
Maria, em chegando a Belém, pariu e embrulhou o menino nuns paninhos e deitou-o
numa manjedoura por não haver lugar na hospedaria. Ora Lucas não mente, mas,
sendo médico, provavelmente rico e pouco habituado às usanças do povo,
interpretou mal aquilo da manjedoura. Eu que nasci no meio do povo sei bem que
isso da hospedaria não cola. Muito menos por aqueles lados onde, apesar de
tudo, as leis da hospitalidade são sagradas. Sendo aquela a terra dos avós de
José, por força a hospedaria pertencia a um dos tios ou primos do velho
carpinteiro, e não se expulsa assim a família. O que na verdade aconteceu é que
Maria, sentindo vir as dores pediu ajuda às primas e às tias. Estas, vendo que
a casa cheia de gente não era o mais adequado para a função de maternidade, e
temendo que o cheiro dos fritos provocasse enjoos à parturiente, trouxeram-na
para fora e acolheram-se ao estábulo onde estava já o burrito descansando da
estafa da jornada. Para mais, aquilo ficava no pátio junto à fonte que nele
havia o que dava jeito para as lavagens, e fico-me por aqui não vá Vossa
Santidade enjoar com os preparos puerpérios.
Ora acontece
que na casa se hospedava uma egípcia, gente fina, mulher de um alto funcionário
romano (isto de os romanos casarem com egípcias estava muito na moda desde o
caso do Júlio César e do Marco António com a Cleópatra, mas isso já o
Santíssimo Padre sabe), que tinha vindo do spa de Herodes junto ao Mar Morto
para cuidar da beleza, e vendo toda aquela azáfama ofereceu-se para ajudar.
Maria, ao princípio não gostou da ideia ao ver que a beleza da egípcia fazia
brilhar os olhinhos de José, mas como tinha bom coração acabou por aceitar a
ajuda. E foi a egípcia que se lembrou, para grande espanto das restantes
parteiras: - é preciso providenciar o
leite. Vai que se dá o caso de a mãe
não o ter suficiente? Berra o menino com fome e acorda todos na hospedaria-
Que sim, que era boa ideia, disseram todas à uma. Mas como fazer? As cabras e
ovelhas do lugar tinham saído para o campo com os pastores, receosos que toda
aquela multidão lhes azedasse o leite nos úberes. – Uma vaca – gritou a egípcia
– por certo o senhorio, homem rico e influente, há-de ter uma vaca. Foi
então que Isabel, prima de Maria, se lembrou da vaca do ti João, e foram todas,
em grande rebuliço, ter com ele, perguntando pela vaca.
-
Mas vocês estão
doidas? Onde é que queriam que tivesse a vaca, senão no estábulo?- E
voltaram todas para o estábulo procurando pela vaca.
A vaca, tendo
visto toda aquela confusão, deitara-se muito sossegada sobre um monte de palha
e por isso ninguém tinha dado por ela. Quando se apercebeu que precisavam dos
seus serviços, levantou-se imponente, com calmas de rainha, e tentou
restabelecer a ordem no estábulo. Desde logo marrou com o burrito que se
alambazava com um molhe de palha fresca obrigando-o a refugiar-se a um canto e
a baixar as orelhas. Depois pôs-se a bufar a ver se aquecia o menino cuja
cabeça já se via, como gritavam as tias enquanto a egípcia fugia agoniada.
E foi assim
que nasceu o menino, entre uma vaca e um burro, e foi posto numa manjedoura.
Uma aranha
desceu pelo fio agarrado à teia na esquina da trave que segurava o telhado, e
pôs-se a girar à roda para entreter o menino. Um galo que debicava pelo pátio
aproximou-se dos pés de José que, temendo que o cantar da ave lhe acordasse o
recém-nascido, logo ali o degolou e fez uma canja para consolo de Maria. Isabel
pediu-lhe a receita, uma estrelinha brilhou no alto e a vaca fez as pazes com o
burro.
E é assim que
Vossa Santidade não pode tirar o burro e a vaca do presépio. Preocupe-se o
Santíssimo Padre com as coisas do alto: da estrela que é uma super nova e da
inviolabilidade da Virgem; e deixe o povo tratar das coisas terrenas como a
preparação de uma jornada, dos partos e da alimentação do menino.
Guarde-se
Vossa Santidade do frio, que eu já me constipei.
Beijo-lhe as
mãos na esperança da sua bênção.
Isto é que é uma estória muito bem contada. Parabéns
ResponderEliminarObrigado. O Papa também a conhece, mas como é alemão gosta de seguir sempre pelo manual oficial que, apesar de tudo, não falando nos bichinhos, também não afirma que lá não estivessem.
EliminarRealço a elevada criatividade, sim senhor.
ResponderEliminarDaria um excelente catequista (por ventura já o foi?), não fosse a ténue mágoa que transparece no seu discurso.
Votos de bons trabalhos e felicidades,
Carlos
Obrigado pelos votos.
EliminarNão fui catequista mas não desdenho o lugar. Quanto à mágoa, é ténue como diz. Não chega a ser mágoa de todo.
Valham-nos todos os anjos e santos. Agora é que a produção cerâmica vai ser enterrada de vez!!!
ResponderEliminarAdorei a estória está realmente muito bem contada e de muito bom gosto obrigada mais uma vez por escreveres tão bem
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