quinta-feira, 22 de novembro de 2012

CORTES NO PRESÉPIO



A Sua Santidade o Papa,
            Cidade do Vaticano, Roma

 Vossa Santidade,

Soube que escreveu um lindo livro sobre a infância de Jesus e, por isso, quero dar-lhe os parabéns. Ficou-me no entanto uma profunda mágoa quando me disseram (não li o livro) que o Santíssimo Padre, talvez contagiado por esta onda de austeridade que a troika nos tem imposto, decidiu fazer cortes no presépio: que a estrela pode ficar desde que lhe chamem super nova, que a virgem é intocável, mas que o burro e a vaquinha vão ter de sair: não constam do registo histórico, diz Vossa Santidade.

Eu protesto. Para cortes já chega o do subsídio de Natal, e no presépio ninguém toca. Nem mesmo Vossa Santidade. É patrono e guardião dos presépios aquele bondoso rapazinho de Assis, que é Francisco como eu, e o Santíssimo Padre vai-me perdoar mas estão ainda os santos no Céu acima de Vossa Santidade na Terra. Pensa o Santíssimo Padre com os seus botões que lhe falo assim porque como não ditou da cadeira de São Pedro não pode invocar a infalibilidade de Vossa Santidade, pelo que não temo a excomunhão. E se assim pensa, pensa muito bem, que eu não sou temerário.

O meu protesto não é um mero slogan do tipo: FORA A TROIKA, QUEREMOS O PRESÉPIO DE VOLTA, não. Eu falo de factos, tal como Vossa Santidade. Arriscando-me a que me acusem de tentar ensinar o Padre Nosso ao Vigário, sempre lhe vou dizendo que tenho razões e provas que sim senhor, os bichinhos estavam lá. Se o Santíssimo Padre afirma que nem Mateus nem Lucas o atestam, também lhe digo eu que o não negaram.

Saiba o Santíssimo Padre que não sou de mexericos mas sabe o senhor e sei eu que Mateus era funcionário público e do Natal limitou-se a fazer o registo no cartório, com genealogia completa. Como gostava de se dar com os grandes deste mundo, não fosse ele cobrador de impostos, relatou com mais pormenor a visita dos magos do Oriente, sempre de olho, não fossem fugir ao IVA do ouro, incenso e mirra que estava pela hora da morte.

Lucas era bom rapaz, não o nego, mas era médico, com mania das higienes e entendeu por bem não misturar o gado com o menino por razões do politicamente correcto, não fosse a ASAE protestar. Mas vamos aos factos.

Diz Lucas que José e Maria subiram de Nazaré a Belém, a fim de se recensearem (império romano, burocracia fina e administração cuidada, um mimo). Atente Vossa Santidade no verbo: subiram! E assim, é.

Deixando Nazaré em direcção ao Sul, atravessaram o vale de Jezreel e começaram a subir as colinas da Samaria, com os seus terraços verdejantes de oliveiras, vinhas e figueiras. Não obstante o medo aos samaritanos, José ofereceu um figo a Maria que tinha desejos. Mais à frente embasbacaram-se com as colunas alinhadas ao longo da estrada que leva à magnífica cidade de Sebaste que Herodes mandou edificar em bajulação a César Augusto. Foi nessa altura que José, indignado, terá dito: é para isto que vão os nossos impostos; e Maria suspirou. E assim continuaram por sítios e locais da história dos judeus, admirando o local onde Jacob sonhou com uma escada que atingia o Céu e o campo onde se elevara a tenda da Arca da Aliança. Por fim entraram em Jerusalém, rezaram junto ao seu templo e continuaram até Belém. Sempre por montes e vales. Sempre em caravana que o mundo era perigoso e ainda o é mais por aqueles lados. Resumida assim muito resumidinha a viagem de José e Maria, quer Vossa Santidade fazer-nos crer que José ia obrigar Maria, grávida do menino, a percorrer aqueles 130 km, por montes e vales, a pé? Sujeito à crítica dos demais viajantes da caravana? - Olha-me pr’aquele. Gente fina (sim, porque José é ou não é descendente do rei David, como escreve Mateus?) e obriga a pobre rapariga, grávida, a viajar a pé - Não. Nem o Santíssimo Padre, apesar de alemão, consentiria numa coisa dessas, porque apesar de naquele tempo não terem de esperar horas intermináveis para passar as infames barreiras que agora vedam a estrada, sempre foram cinco dias a uma semana de caminhada. Maria houve por força subir de Nazaré a Belém montada num burro.

E já temos o burro.

Diz Lucas que Maria, em chegando a Belém, pariu e embrulhou o menino nuns paninhos e deitou-o numa manjedoura por não haver lugar na hospedaria. Ora Lucas não mente, mas, sendo médico, provavelmente rico e pouco habituado às usanças do povo, interpretou mal aquilo da manjedoura. Eu que nasci no meio do povo sei bem que isso da hospedaria não cola. Muito menos por aqueles lados onde, apesar de tudo, as leis da hospitalidade são sagradas. Sendo aquela a terra dos avós de José, por força a hospedaria pertencia a um dos tios ou primos do velho carpinteiro, e não se expulsa assim a família. O que na verdade aconteceu é que Maria, sentindo vir as dores pediu ajuda às primas e às tias. Estas, vendo que a casa cheia de gente não era o mais adequado para a função de maternidade, e temendo que o cheiro dos fritos provocasse enjoos à parturiente, trouxeram-na para fora e acolheram-se ao estábulo onde estava já o burrito descansando da estafa da jornada. Para mais, aquilo ficava no pátio junto à fonte que nele havia o que dava jeito para as lavagens, e fico-me por aqui não vá Vossa Santidade enjoar com os preparos puerpérios.

Ora acontece que na casa se hospedava uma egípcia, gente fina, mulher de um alto funcionário romano (isto de os romanos casarem com egípcias estava muito na moda desde o caso do Júlio César e do Marco António com a Cleópatra, mas isso já o Santíssimo Padre sabe), que tinha vindo do spa de Herodes junto ao Mar Morto para cuidar da beleza, e vendo toda aquela azáfama ofereceu-se para ajudar. Maria, ao princípio não gostou da ideia ao ver que a beleza da egípcia fazia brilhar os olhinhos de José, mas como tinha bom coração acabou por aceitar a ajuda. E foi a egípcia que se lembrou, para grande espanto das restantes parteiras: - é preciso providenciar o leite. Vai que se dá o caso de a mãe não o ter suficiente? Berra o menino com fome e acorda todos na hospedaria- Que sim, que era boa ideia, disseram todas à uma. Mas como fazer? As cabras e ovelhas do lugar tinham saído para o campo com os pastores, receosos que toda aquela multidão lhes azedasse o leite nos úberes. – Uma vaca – gritou a egípcia – por certo o senhorio, homem rico e influente, há-de ter uma vaca. Foi então que Isabel, prima de Maria, se lembrou da vaca do ti João, e foram todas, em grande rebuliço, ter com ele, perguntando pela vaca.

-       Mas vocês estão doidas? Onde é que queriam que tivesse a vaca, senão no estábulo?- E voltaram todas para o estábulo procurando pela vaca.

A vaca, tendo visto toda aquela confusão, deitara-se muito sossegada sobre um monte de palha e por isso ninguém tinha dado por ela. Quando se apercebeu que precisavam dos seus serviços, levantou-se imponente, com calmas de rainha, e tentou restabelecer a ordem no estábulo. Desde logo marrou com o burrito que se alambazava com um molhe de palha fresca obrigando-o a refugiar-se a um canto e a baixar as orelhas. Depois pôs-se a bufar a ver se aquecia o menino cuja cabeça já se via, como gritavam as tias enquanto a egípcia fugia agoniada.

E foi assim que nasceu o menino, entre uma vaca e um burro, e foi posto numa manjedoura.

Uma aranha desceu pelo fio agarrado à teia na esquina da trave que segurava o telhado, e pôs-se a girar à roda para entreter o menino. Um galo que debicava pelo pátio aproximou-se dos pés de José que, temendo que o cantar da ave lhe acordasse o recém-nascido, logo ali o degolou e fez uma canja para consolo de Maria. Isabel pediu-lhe a receita, uma estrelinha brilhou no alto e a vaca fez as pazes com o burro.

E é assim que Vossa Santidade não pode tirar o burro e a vaca do presépio. Preocupe-se o Santíssimo Padre com as coisas do alto: da estrela que é uma super nova e da inviolabilidade da Virgem; e deixe o povo tratar das coisas terrenas como a preparação de uma jornada, dos partos e da alimentação do menino.

Guarde-se Vossa Santidade do frio, que eu já me constipei.

Beijo-lhe as mãos na esperança da sua bênção.



6 comentários:

  1. Isto é que é uma estória muito bem contada. Parabéns

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    1. Obrigado. O Papa também a conhece, mas como é alemão gosta de seguir sempre pelo manual oficial que, apesar de tudo, não falando nos bichinhos, também não afirma que lá não estivessem.

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  2. Realço a elevada criatividade, sim senhor.

    Daria um excelente catequista (por ventura já o foi?), não fosse a ténue mágoa que transparece no seu discurso.

    Votos de bons trabalhos e felicidades,
    Carlos

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    1. Obrigado pelos votos.
      Não fui catequista mas não desdenho o lugar. Quanto à mágoa, é ténue como diz. Não chega a ser mágoa de todo.

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  3. Valham-nos todos os anjos e santos. Agora é que a produção cerâmica vai ser enterrada de vez!!!

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  4. Adorei a estória está realmente muito bem contada e de muito bom gosto obrigada mais uma vez por escreveres tão bem

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