quarta-feira, 28 de novembro de 2012

TÚMULOS, INDEPENDÊNCIAS E SECESSÕES



A propósito das recentes eleições na Catalunha ouvi um cidadão daquela região dizer para as câmaras de televisão, que desejava para a sua terra a independência, tal como Portugal a tinha conseguido em 1640, ano em que a Catalunha viu a sua pretensão derrotada na sequência do caso da “guerra dos segadores”. Tal comparação é recorrente e utilizam-na como vitimização a puxar à boa consciência das almas sempre prontas ao sobressalto perante os povos oprimidos. No entanto a mesma é pouco rigorosa senão mesmo ofensiva, para nós portugueses. Os casos português e catalão não são idênticos e nunca o foram.

Desde logo a falta de rigor nas palavras: independência, para nós europeus pós-coloniais, faz lembrar a libertação do jugo colonial, como o das nações africanas e asiáticas. O mesmo termo foi contudo utilizado anteriormente para designar o que aconteceu às colónias americanas apesar de a situação não ser idêntica. Em África, os povos colonizados, não representados na potência colonizadora, assumiram os seus destinos libertando-se da potência estrangeira. Na América foram os colonos quem decidiram separar-se da pátria mãe. Os casos são manifestamente diferentes e não é uma palavra que os torna iguais.

Quanto aos sobressaltos, estes dependem mais dos motivos do que da vontade dos povos. Assim, quem verte lágrimas pela situação catalã não as verteria certamente em defesa da vontade da Carolina do Sul durante a guerra de secessão americana.

Porque afirmo então que aquela comparação me pareceu quase insultuosa? Porque Portugal teve de aceitar, por fatalidade, um rei que, embora português de direito (e de coração), trazia consigo a carga de outro trono e de outros interesses que colidiam com os nossos. Não foi Castela quem nos tirou soberania, foi a Espanha constituída pela união de Castela e Aragão, que é o mesmo que dizer, Castela e Catalunha. Se esta queria a secessão, que não independência, nós queríamos ver-nos livres de um rei que parecia e actuava como estrangeiro. Não restaurámos a independência porque nunca a perdemos de jure e nunca fomos Espanha como a Catalunha.

Na verdade, fizemos um golpe de estado onde restaurámos a independência do nosso rei. Isto é, exigimos um rei que fosse livre e independente de outros interesses que não os portugueses. “Somos livres porque nosso rei é livre…”

Que se saiba a Catalunha, desde a reconquista aos mouros, não foi colónia mas potência colonizadora dos territórios sob domínio mouro e do Mediterrâneo, cujo senhorio viu ameaçado com a conquista de Constantinopla pelos turcos que assim assumiram o predomínio naquele mar.

Perde o Mediterrâneo importância e por Sevilha se abre uma porta ao Atlântico e às riquezas do Novo Mundo que um alentejano, baptizado de italiano, oferece de bandeja. Castelhanos e Catalães juntam-se em casamento com comunhão de bens que chegam das colónias americanas e asiáticas.

E são Castela e Catalunha unidas de comum acordo, e com igual cota, que conquistam o reino de Granada, último suspiro andaluz, e usufruem juntas das suas riquezas e juntas formam, finalmente, a Espanha. Lá estão, no último rincão ibérico, na cripta da capela real da catedral da Encarnação em Granada, repousando em paz, Fernando e Isabel, com Joana, a Louca, Filipe, o Belo e Miguel da Paz, príncipe de Portugal e das Astúrias e sonhador da união ibérica.

Catalunha e Castela uniram-se porque quiseram, Portugal foi unido querendo ou não. Gritam agora os Catalães da secessão contra os que estão em Madrid, num provincianismo ferido porque a capital da Espanha de Fernando e Isabel já não está em Sevilha, mas no centro de Castela.

 Se a Catalunha se quer separar de Castela, e quebrar uma união formada no interesse de ambas, é assunto que não me diz respeito. Mas diz-me respeito comparações abusivas a puxar ao sentimentalismo, e diz-me respeito uma intelectualidade portuguesa que sempre que ouve falar em independências se agita empolgada e provinciana, cega ao chauvinismo e egoísmo que se pode esconder por detrás desse desejo, esquecendo que a luta dos povos se faz na internacionalização e não com nacionalismos serôdios. É que a Andaluzia, com a “preguiça” dos povos do Sul, parece agora exigir demasiado dos povos do Norte, como se cobrasse renda pelos túmulos.

Lembrar-se-á a Andaluzia da sua posição de colonizada, confirmada pelas estátuas jazentes de Castela e Catalunha no túmulo de pedra da catedral de Granada?

Tornar-se-á Isabel numa viúva de pedra, apagando-se a estátua de Fernando como se fazia nas fotografias da antiga União Soviética, na tentativa de esconder a História?

Não. A restauração que agora comemoramos não é comparável a secessões. Sairão os Catalães da Espanha que construíram, como entraram: querendo. Nós não saímos porque não chegámos a entrar.

Mas não esqueçamos que foram co-fundadores da Espanha, no momento mais alto da sua história, onde partilharam glória e riqueza. Ao saírem no momento em que essa Espanha deles precisa, não saem como vítimas…



quinta-feira, 22 de novembro de 2012

CORTES NO PRESÉPIO



A Sua Santidade o Papa,
            Cidade do Vaticano, Roma

 Vossa Santidade,

Soube que escreveu um lindo livro sobre a infância de Jesus e, por isso, quero dar-lhe os parabéns. Ficou-me no entanto uma profunda mágoa quando me disseram (não li o livro) que o Santíssimo Padre, talvez contagiado por esta onda de austeridade que a troika nos tem imposto, decidiu fazer cortes no presépio: que a estrela pode ficar desde que lhe chamem super nova, que a virgem é intocável, mas que o burro e a vaquinha vão ter de sair: não constam do registo histórico, diz Vossa Santidade.

Eu protesto. Para cortes já chega o do subsídio de Natal, e no presépio ninguém toca. Nem mesmo Vossa Santidade. É patrono e guardião dos presépios aquele bondoso rapazinho de Assis, que é Francisco como eu, e o Santíssimo Padre vai-me perdoar mas estão ainda os santos no Céu acima de Vossa Santidade na Terra. Pensa o Santíssimo Padre com os seus botões que lhe falo assim porque como não ditou da cadeira de São Pedro não pode invocar a infalibilidade de Vossa Santidade, pelo que não temo a excomunhão. E se assim pensa, pensa muito bem, que eu não sou temerário.

O meu protesto não é um mero slogan do tipo: FORA A TROIKA, QUEREMOS O PRESÉPIO DE VOLTA, não. Eu falo de factos, tal como Vossa Santidade. Arriscando-me a que me acusem de tentar ensinar o Padre Nosso ao Vigário, sempre lhe vou dizendo que tenho razões e provas que sim senhor, os bichinhos estavam lá. Se o Santíssimo Padre afirma que nem Mateus nem Lucas o atestam, também lhe digo eu que o não negaram.

Saiba o Santíssimo Padre que não sou de mexericos mas sabe o senhor e sei eu que Mateus era funcionário público e do Natal limitou-se a fazer o registo no cartório, com genealogia completa. Como gostava de se dar com os grandes deste mundo, não fosse ele cobrador de impostos, relatou com mais pormenor a visita dos magos do Oriente, sempre de olho, não fossem fugir ao IVA do ouro, incenso e mirra que estava pela hora da morte.

Lucas era bom rapaz, não o nego, mas era médico, com mania das higienes e entendeu por bem não misturar o gado com o menino por razões do politicamente correcto, não fosse a ASAE protestar. Mas vamos aos factos.

Diz Lucas que José e Maria subiram de Nazaré a Belém, a fim de se recensearem (império romano, burocracia fina e administração cuidada, um mimo). Atente Vossa Santidade no verbo: subiram! E assim, é.

Deixando Nazaré em direcção ao Sul, atravessaram o vale de Jezreel e começaram a subir as colinas da Samaria, com os seus terraços verdejantes de oliveiras, vinhas e figueiras. Não obstante o medo aos samaritanos, José ofereceu um figo a Maria que tinha desejos. Mais à frente embasbacaram-se com as colunas alinhadas ao longo da estrada que leva à magnífica cidade de Sebaste que Herodes mandou edificar em bajulação a César Augusto. Foi nessa altura que José, indignado, terá dito: é para isto que vão os nossos impostos; e Maria suspirou. E assim continuaram por sítios e locais da história dos judeus, admirando o local onde Jacob sonhou com uma escada que atingia o Céu e o campo onde se elevara a tenda da Arca da Aliança. Por fim entraram em Jerusalém, rezaram junto ao seu templo e continuaram até Belém. Sempre por montes e vales. Sempre em caravana que o mundo era perigoso e ainda o é mais por aqueles lados. Resumida assim muito resumidinha a viagem de José e Maria, quer Vossa Santidade fazer-nos crer que José ia obrigar Maria, grávida do menino, a percorrer aqueles 130 km, por montes e vales, a pé? Sujeito à crítica dos demais viajantes da caravana? - Olha-me pr’aquele. Gente fina (sim, porque José é ou não é descendente do rei David, como escreve Mateus?) e obriga a pobre rapariga, grávida, a viajar a pé - Não. Nem o Santíssimo Padre, apesar de alemão, consentiria numa coisa dessas, porque apesar de naquele tempo não terem de esperar horas intermináveis para passar as infames barreiras que agora vedam a estrada, sempre foram cinco dias a uma semana de caminhada. Maria houve por força subir de Nazaré a Belém montada num burro.

E já temos o burro.

Diz Lucas que Maria, em chegando a Belém, pariu e embrulhou o menino nuns paninhos e deitou-o numa manjedoura por não haver lugar na hospedaria. Ora Lucas não mente, mas, sendo médico, provavelmente rico e pouco habituado às usanças do povo, interpretou mal aquilo da manjedoura. Eu que nasci no meio do povo sei bem que isso da hospedaria não cola. Muito menos por aqueles lados onde, apesar de tudo, as leis da hospitalidade são sagradas. Sendo aquela a terra dos avós de José, por força a hospedaria pertencia a um dos tios ou primos do velho carpinteiro, e não se expulsa assim a família. O que na verdade aconteceu é que Maria, sentindo vir as dores pediu ajuda às primas e às tias. Estas, vendo que a casa cheia de gente não era o mais adequado para a função de maternidade, e temendo que o cheiro dos fritos provocasse enjoos à parturiente, trouxeram-na para fora e acolheram-se ao estábulo onde estava já o burrito descansando da estafa da jornada. Para mais, aquilo ficava no pátio junto à fonte que nele havia o que dava jeito para as lavagens, e fico-me por aqui não vá Vossa Santidade enjoar com os preparos puerpérios.

Ora acontece que na casa se hospedava uma egípcia, gente fina, mulher de um alto funcionário romano (isto de os romanos casarem com egípcias estava muito na moda desde o caso do Júlio César e do Marco António com a Cleópatra, mas isso já o Santíssimo Padre sabe), que tinha vindo do spa de Herodes junto ao Mar Morto para cuidar da beleza, e vendo toda aquela azáfama ofereceu-se para ajudar. Maria, ao princípio não gostou da ideia ao ver que a beleza da egípcia fazia brilhar os olhinhos de José, mas como tinha bom coração acabou por aceitar a ajuda. E foi a egípcia que se lembrou, para grande espanto das restantes parteiras: - é preciso providenciar o leite. Vai que se dá o caso de a mãe não o ter suficiente? Berra o menino com fome e acorda todos na hospedaria- Que sim, que era boa ideia, disseram todas à uma. Mas como fazer? As cabras e ovelhas do lugar tinham saído para o campo com os pastores, receosos que toda aquela multidão lhes azedasse o leite nos úberes. – Uma vaca – gritou a egípcia – por certo o senhorio, homem rico e influente, há-de ter uma vaca. Foi então que Isabel, prima de Maria, se lembrou da vaca do ti João, e foram todas, em grande rebuliço, ter com ele, perguntando pela vaca.

-       Mas vocês estão doidas? Onde é que queriam que tivesse a vaca, senão no estábulo?- E voltaram todas para o estábulo procurando pela vaca.

A vaca, tendo visto toda aquela confusão, deitara-se muito sossegada sobre um monte de palha e por isso ninguém tinha dado por ela. Quando se apercebeu que precisavam dos seus serviços, levantou-se imponente, com calmas de rainha, e tentou restabelecer a ordem no estábulo. Desde logo marrou com o burrito que se alambazava com um molhe de palha fresca obrigando-o a refugiar-se a um canto e a baixar as orelhas. Depois pôs-se a bufar a ver se aquecia o menino cuja cabeça já se via, como gritavam as tias enquanto a egípcia fugia agoniada.

E foi assim que nasceu o menino, entre uma vaca e um burro, e foi posto numa manjedoura.

Uma aranha desceu pelo fio agarrado à teia na esquina da trave que segurava o telhado, e pôs-se a girar à roda para entreter o menino. Um galo que debicava pelo pátio aproximou-se dos pés de José que, temendo que o cantar da ave lhe acordasse o recém-nascido, logo ali o degolou e fez uma canja para consolo de Maria. Isabel pediu-lhe a receita, uma estrelinha brilhou no alto e a vaca fez as pazes com o burro.

E é assim que Vossa Santidade não pode tirar o burro e a vaca do presépio. Preocupe-se o Santíssimo Padre com as coisas do alto: da estrela que é uma super nova e da inviolabilidade da Virgem; e deixe o povo tratar das coisas terrenas como a preparação de uma jornada, dos partos e da alimentação do menino.

Guarde-se Vossa Santidade do frio, que eu já me constipei.

Beijo-lhe as mãos na esperança da sua bênção.



quinta-feira, 15 de novembro de 2012

AS PEDRAS DA CALÇADA


Santiago Carrillo, o líder histórico do partido comunista espanhol, ombreando com o ex-franquista Suárez, a quem Carrillo chamava o “anticomunista inteligente”, e com o general Mellado, permanecem firmes e resolutos em defesa da democracia, durante o assalto de Tejero ao congresso dos deputados em Madrid. Estava-se em 1981 e o dia 23 de Fevereiro morria por detrás do pico Almanzor.
Quarenta e oito anos antes, noutra noite fria de Fevereiro, Berlim ilumina-se com o Reichstag em chamas. Hitler, interrompendo o jantar, confidencia a Goering que aquele é o sinal dos céus. Mais tarde dirá a um jornalista que aquele incêndio do parlamento alemão é o início de uma época de ouro na história da Alemanha.
Para além da destruição dos respectivos parlamentos, estes dois acontecimentos tinham em comum, como pano de fundo, crises financeiras tremendas e desemprego galopante. Os dois visavam a instituição de uma ditadura, objectivo histórico de qualquer assalto a parlamentos. Se no último a tragédia durou escassas horas, no primeiro teve a duração de um horror que não se conta em tempo.
Dizia Marx que a história se repete: primeiro em tragédia, depois em farsa. O que vimos ontem ao fim da tarde, para além da destruição das calçadas de Lisboa, foi a farsa em que quiseram transformar a justa indignação das pessoas.



domingo, 11 de novembro de 2012

O CANHÃO DA NAZARÉ E SUAS CONSEQUÊNCIAS

            Aqui há tempos, alguém pouco frequentador das salas de concerto nacionais, confessava-se admirado de ter ouvido uma orquestra portuguesa bem afinada. É assim ainda com muita gente. Não sabem, por exemplo, que Maria Callas entrou no palco do São Carlos de braço dado com Álvaro Malta, um obstetra que cantava ópera quase como amador, no melhor sentido da palavra, ou que no último ciclo do “Anel do Nibelungo” de Wagner foi um alcobacense, Jorge Trindade, quem nos deliciou com um comovente solo de clarinete naquele mesmo teatro.
E é assim porque se continua a pensar que só lá fora se faz bem, como se eu não tivesse ouvido uma orquestra alemã desafinar numa famosa sala de Londres, ou se não tivesse sido um alemão quem proporcionou uma das temporadas mais desastrosas do nosso teatro lírico.
Dir-me-ão que são as excepções que confirmam a regra. Talvez. De facto Portugal teve ao longo dos últimos anos e séculos, grandes nomes no meio musical, mas faltava-lhe consistência e regularidade. Isto é, eram excepções num meio onde faltavam orquestras, agrupamentos, escolas e cultura musical.
Era assim há 25 anos. Hoje é possível, no Oeste, e só com a prata da casa, percorrer o universo musical do jazz ao clássico com a qualidade “do que se faz lá fora”, e não estou a falar de excepções, mas de uma massa crítica de gente jovem que tem a técnica, o saber e a cultura musical necessárias, para transformarem a música numa actividade cultural de prestígio que a todos nos honra.
Essa massa crítica não nasceu de geração espontânea. Foi o esforço de alguns “doidos” que apostaram na educação e na formação. Da união de esforços de um “doido” do Oeste e de uma visionária que veio de França, se percorreu a distância que vai de uma loja de música a um conservatório de música. Depois foram outros projectos e tudo deu flor e fruto; agora são maestros, compositores, bandas de grande qualidade nas Caldas da Rainha, Valado, Famalicão e Nazaré, grupos de música ligeira, de jazz e de Câmara, festivais de música, etc. Para não me acusarem de ser excessivamente positivo, direi que só falta a ópera (resolvam os responsáveis pela educação o problema do ensino de cordas que o canto, cenários, guarda-roupa, faz-se cá que temos massa crítica e escolas para isso). O resto está cá tudo, com tanta qualidade como do melhor se faz por esse mundo fora.
Foi no São Martinho, época de apreciar as colheitas: Ontem, a Big-Band da Nazaré, com a rapaziada do Oeste, deu-nos momentos de felicidade e gozo, como quem frui de um néctar proveniente da vindima de uma vinha de boa qualidade, bem plantada, e cuidada.
Já que falamos da Nazaré, convém esclarecer que o jazz não é propriamente a minha praia, mas ontem, no Centro Cultural e Congressos de Caldas da Rainha, a Big-Band da Nazaré e seus convidados conseguiram comover-me e pôr-me com a lágrima ao canto do olho ao ouvir tão bela e preciosa colheita destes vinte e tal anos. Valeu a pena.
As cantoras e os solistas foram magníficos, mas seria arrogância pôr-me agora a fazer crítica musical. Não posso, contudo, deixar de sublinhar o excelente tema de João Capinha: A qualidade da composição, aliada à qualidade da execução, proporcionou-nos um momento de grande beleza.
E ouviram-se duas vozes magníficas: Joana Rios e Júlia Valentim. A “nossa” Júlia conheci-a quanto integrámos um coro para o Requiem de Mozart. A Júlia, que canta Schubert com a graça de um anjo, cantou jazz com a sensualidade e o calor dos planaltos de Angola. Esteve grande, enorme, naquele palco.
É caso para dizer que o canhão da Nazaré provocou uma onda gigantesca que varreu o Oeste. Obrigado Adelino Mota.
 


quarta-feira, 7 de novembro de 2012

A INFLUÊNCIA DE PANGLOSS NO ESTADO DA NAÇÃO


Durante muitos anos vivi, sem o saber, sob a influência dos ensinamentos do doutor Pangloss e, qual Cândido, julgando viver no melhor dos países possíveis. Esta é, talvez, a contribuição mais marcante que a educação do Estado Novo me deixou inculcada na alma. Tão forte era a sua marca que, ainda menino, julguei que o próprio Deus procurara para incarnar uma virgem de Entre-o-Douro e Minho (compreendam… foi há muitos anos…). Com o passar do tempo, e ao contrário do bom Pangloss sempre optimista, mas cuja vida fez jus ao adágio: nada é tão mau que não possa piorar; fui-me tornando cínico.
Como Leibniz, mentor estimado do professor da corte do barão Thunder-ten-Tronckh, fiz-me engenheiro. Ou, como manda a modéstia, obtive um diploma em engenharia. Nessa qualidade tive a oportunidade de ir apreciando como as doutas e sábias cabeças que administram o país vão gerando e parindo regulamentos e normativos vários. Por estes pequenos exemplos se vai percebendo o que por aí se foi fazendo.
Um dia, numa conferência ou seminário sobre ambiente, um certo secretário de estado, muito dado à polémica e por isso mandado rapidamente para Bruxelas, sentado à mesa de honra e baloiçando no ar as pernitas, gritava sério e rubicundo que Portugal estava atrasado porque gastava pouca energia e que era preciso urgentemente aumentar os nossos gastos energéticos. Eu, que ainda via ministros e secretários de estado aureolados como santos em altar, afundei-me como pude pela cadeira abaixo envergonhado de ainda correr a apagar as luzes do corredor. Não faltou muito tempo (talvez assustados com as marcas dos cascos) que não gritassem que era preciso diminuir a nossa pegada ecológica, desdizendo o que antes berraram.
De outra vez, surgindo a necessidade de em determinada aldeia do sopé da serra se construir um jardim-de-infância, vieram os técnicos com seus regulamentos ministeriais verificar o local. Apertados com a falta de espaços disponíveis, arranjara a autarquia um lugar mesmo azado para o efeito e juntinho à escola primária. Ficavam ali como Deus e os anjos. Gritaram que não, arrepanharam os cabelos e pouco faltou para rasgarem as vestes: onde já se viu, juntar criancinhas saídas do colo da mãe com matulões da primária. Titubeei que andavam todos juntos na única rua da aldeia e que juntos brincavam no adro da igreja. Fuzilaram-me com o olhar. Tempos depois era permitido que se juntasse a pré com a primária e as duas com o secundário: as regras mudaram, disseram-me. Não se admire o leitor se as vir junto à universidade: pelo andar das coisas já pouca diferença há entre o aluno da pré e o caloiro que se sujeita à praxe.
Numa estimável tentativa do ministério da educação em ensinar engenheiros a construir escolas, aprendi num curso que as vedações devem ser baixas. Argumentei que assim as bolas fugiam e perdiam-se por pomares, quintais e estradas, pois não saberiam os doutores do ministério que os miúdos jogavam à bola? Ficam traumatizados, explicaram-me, pensarão que estão num presídio. Tempos depois o mesmo ministério exigia vedações altas e devidamente quadriculadas de forma a impedir que as crianças pusessem nelas o pé e pulassem a cerca. Não era o perigo da bola, era o perigo de fugirem!!! Isto tudo muito bem verificado por um oficial do exército que juntava à reforma, a assessoria na segurança das construções escolares. Onde antes não podia haver grades, passava a haver a guerra das trincheiras…
Ao ver o estado em que esta gente deixou o país, e ao ver a forma como esta mesma gente (são sempre os mesmos, embora mudem de nome e de cara) tenta remediar o mal, cada vez me convenço mais que, como disse há dias o bispo do Porto, já não vêem um palmo à frente do nariz. Já não vêem e nunca viram!
Obama ganhou a uma terça-feira de Novembro, porque assim ficou decidido há mais de duzentos anos de acordo com a agenda agrícola duma América rural. Só mudarão quando houver razões de peso que não a míngua da ruralidade actual.
Nós, à míngua de tudo, não tarda estamos, como antigamente, agarrados à rabiça do arado, aguilhoando o muar. Prevendo esses tempos, e como dizia o Cândido, aconselhado por Pangloss, que precisamos de cuidar do jardim, nada melhor do que recorrer ao velho e imutável Borda d’Água, que diz para Novembro:
“No jardim estercar covas para a plantação na Primavera de árvores ou arbustos (se for preciso aproveitem o esterco que se tem feito). Estacar as plantas contra o vento. Plantar bolbos de flores. Podar as roseiras e plantar novas. Na horta semear agrião, alface, cenoura, couves. Plantar batatas, alho, couve temporã, tremoço. Semear fava, ervilha, e em camas quentes, alface, beterraba, cebola, nabiça, nabo, rabanete e tomate”.
E porque estamos cerca do São Martinho, há que “verificar as vasilhas do vinho novo”, que este ano promete ser do melhor. Valha-nos isso.